Existem aspectos da Fé Ortodoxa que exige que alcancemos além do que pensamos saber, e cavemos mais profundamente nos escritos dos Padres. Vemos uma palavra (neste caso, “providência”) e pensamos que sabemos o que ela significa, fornecendo esse significado a partir do nosso vocabulário teológico/cultural ocidental herdado. Às vezes, porém, é necessário corrigir tais significados. Então, vou me aprofundar um pouco nos escritos de Dionísio, o Areopagita, uma pedra de toque importante no pensamento ortodoxo e, curiosamente, importante também para certos escritores do Ocidente.
Minha fonte primária neste artigo será a obra: Mistagogia: Uma Leitura Monástica de Dionísio Areopagita, de Arcebispo Alexander Golitzin. Não conheço um trabalho melhor sobre Dionísio. Aqui está a passagem que quero explorar (seja paciente e continue lendo):
Mas, ainda assim, Dionísio pergunta, como é possível á nós atribuir nomes para Deus dada a impossibilidade de conceber a Trindade? É possível, responde ele alguns capítulos adiante, justamente porque não é a essência divina que está em questão, mas “os nomes divinos revelados da Providência”, da “Providência criadora do bem que se revelou” e, portanto, é justamente celebrado como “a causa de todas as coisas boas”.
A providência (Deus em extensão) é Deus revelado, e Deus revelado é revelado como “a realidade da bondade, a causa de tudo o que é”; portanto, “deve-se celebrar a Providência de Deus como fonte do bem em todos os seus efeitos”.
Causa e fundamento de tudo, a Providência abrange tudo e, portanto, tudo pode ser visto como em algum sentido expressivo dela. Deus pode, portanto, ser chamado por qualquer um dos nomes de sua criação. Seu nome é todo nome e nenhum nome. [de Golitzin]
Ok, é uma leitura densa. Mas, antes de desistir deste artigo, pense comigo neste próximo parágrafo.
No pensamento teológico popular, quando a palavra “providência” é usada, as pessoas assumem que significa – “Deus de alguma forma guiando a história para fazer as coisas darem certo”. Essa maneira de pensar está cheia de problemas.
A maioria das pessoas pensa na história como uma série de eventos de causa e efeito. Fomos ensinados a escrever artigos de história como este: “Descreva e discuta as causas da Guerra das Rosas…” Quando esta é a nossa noção de história, então temos muita dificuldade em descobrir onde Deus Se encaixa nas coisas… Ele trabalha fazendo um rei pensar e fazer uma coisa, e outro rei pensar e fazer outra (multiplique para incluir todos e tudo no mundo inteiro e você chega perto de ver Deus como um mestre de marionetes gigante)? Se você fugiu da teologia do mestre de marionetes – você se saiu bem.
Uma maneira um tanto sorrateira de dizer a mesma coisa é encontrada na boca de muitos pensadores modernos (incluindo alguns ortodoxos). E é assim: Deus está totalmente comprometido em trabalhar na e através da história. Ele fez isso ao escolher Abraão e criar o povo escolhido, e do povo escolhido, tomando uma virgem pura, e dela Ele Se torna homem e habita entre nós. Então Ele nos deu a Igreja que agora é o meio de Deus agir na história, e a Igreja agora está “construindo o Reino de Deus neste mundo”.
Então, o que é isso? Voltamo-nos para Dionísio.
Ab. Alexandre descreve a Providência como “Deus em extensão”. Em Dionísio, a Providência é a maneira primária pela qual as Energias Divinas interagem com toda a criação. Dionísio trabalhou com muitas categorias e termos importantes da filosofia grega, algo que já fazia parte da tradição teológica ortodoxa. No entanto, sua obra “cristianizou” essas categorias e termos e nos deu talvez a apresentação mais madura da fé até aquele momento.
Um tema forte em sua obra é nossa “saída” de Deus e nosso “retorno”.
As intenções de Deus para nós existiam “nele” desde antes de nossa criação (pense no Profeta Jeremias – “antes de te formar no ventre eu te conhecia”). Essas intenções continuam conosco e em nós – elas são as “Energias Divinas” que sustentam e trabalham dentro de toda a criação. Essas energias são “Deus em extensão”.
Isso não é de forma alguma uma forma de panteísmo. As energias divinas são, de fato, o próprio Deus. Esse é o dogma ortodoxo. Mas as energias divinas não são a essência divina. Podemos conhecer e participar da vida de Deus em Suas energias, mas não conhecemos nem participamos de Deus em Sua essência, imanência e transcendência.
Dionísio explora muito disso em seu tratado Sobre os Nomes Divinos. Vemos (e conhecemos em medidas variadas) os nomes de Deus – Bondade, Ser, Verdade, Beleza, Misericórdia, etc. Rapidamente teríamos que dizer quanto à essência de Deus, que Ele é Bondade além da Bondade, Ser além do Ser, Verdade além da Verdade, Beleza além da Beleza, etc. Este tipo de linguagem é ouvido repetidamente na vida liturgia da Igreja. Reflete tanto a realidade da incognoscibilidade de Deus, quanto o mistério de Suas energias presentes em todos os lugares, preenchendo todas as coisas e tornando-O conhecido.
“Deus em extensão” é resumido na palavra “Providência”. Nossa história não é primariamente histórica – é eterna. A existência deste universo histórico brilha com o brilho da eterna Providência de Deus, que o torna possível. O propósito deste universo não é definido por sua história, como tal, mas pela vontade de Deus: “[…] para que Ele possa reunir todas as coisas em Cristo Jesus.” (Efésios 1:10)… O movimento da boa vontade de Deus, o amor de Deus, criando e atraindo implacavelmente todas as coisas para Ele. Esse é o nosso drama diário e o foco adequado da nossa atenção.
A secularização do pensamento cristão começa principalmente pela mudança para uma história na qual Deus é limitado em seu relacionamento conosco, através de certos atores escolhidos. Ele se torna um jogador entre os jogadores. Mas este não é o Deus que está presente em todos os lugares e preenchendo todas as coisas. Uma das muitas mentiras da modernidade é centralizar nossa existência no processo histórico e depois focar nesse processo. A Igreja torna-se cativa do processo político através do fetiche da história.
Com efeito, a fetichização da história reduz a Encarnação a um evento entre eventos – o cavalo de Deus na corrida – mas apenas um cavalo entre muitos. O que muitas vezes se perde nessa diminuição é a grandeza extravagante e avassaladora do Deus Encarnado. Aquele de quem vêm todas as coisas, a fonte do ser, da bondade, da beleza, da verdade, tornou-se uma criatura entre as criaturas. É a promessa e o antegozo de nossa união com Deus. Ele é a revelação da Providência e da Imagem que direciona nossa atenção para ver o mundo adequadamente (e dar-Lhe graças e adoração).
Nossos mestres culturais procuram direcionar nossa atenção para as narrativas mesquinhas de sua falsa história. É como olhar para um vaso sanitário e tentar discernir o mistério da existência.
A história – qualquer que seja o significado do termo – é vista melhor e corretamente pelas lentes da Providência. São Paulo diz: “[…] tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, tudo o que é virtuoso e louvável, eis o que deve ocupar vossos pensamentos.” (Filipenses 4:8).
Cristo é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, de boa fama, virtuoso e louvável. Na Providência de Deus, a Encarnação é vista refletida em todas essas coisas: nos nomes de todas as coisas boas. “Pois Ele é todo nome e nenhum nome.” Ele está acima de todo nome e tudo recebe seu nome n´Ele.
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Sacerdote Stephen Freeman
tradução de Frank Pereira







