Há frases que, à primeira vista, parecem simples conselhos de convivência. Mas algumas escondem verdades sobre quem somos e sobre aquilo que Deus nos confiou. Uma delas diz: “Nunca brinque com os sentimentos dos outros. Você pode até ganhar o jogo, mas perderá a pessoa para sempre.”
Quem vive a fé da Igreja Ortodoxa percebe que não se trata apenas de comportamento social. Aqui vemos o mistério da pessoa humana, criada à imagem de Deus. Cada coração é um pequeno altar onde Deus deseja habitar, e por isso todo vínculo é algo sagrado. Quando tratamos alguém com leviandade, ironia, manipulação ou indiferença, não estamos apenas ferindo emoções. Estamos ferindo um ícone vivo.
Os Santos Padres falam com frequência sobre esse cuidado. São João Crisóstomo dizia que o ser humano é “mais precioso do que todo o mundo visível”. Santo Isaac, o Sírio, acrescenta que o coração de quem ama a Deus é tão sensível que não suporta ferir ninguém, porque vê em cada pessoa um irmão ferido pela mesma luta interior que todos nós travamos. Na Tradição Ortodoxa, amar não é um sentimento passageiro, mas uma responsabilidade.
Brincar com sentimentos é transformar a relação humana em palco, e a vida espiritual não tolera palco. Onde existe jogo, existe cálculo; e onde existe cálculo, o amor deixa de respirar. A lógica do Evangelho é outra: é o cuidado, a verdade e a transparência. Quando usamos o afeto alheio para testar poder, medir influência ou alimentar vaidades, criamos rachaduras que nem sempre podem ser reparadas. Perdemos a pessoa, não porque ela tenha desaparecido, mas porque quebramos a confiança, e a confiança, uma vez ferida, exige tempo, humildade e arrependimento verdadeiro para voltar a florescer.
Grande parte das feridas emocionais nasce do uso descuidado da palavra. Os Padres alertam que a língua pode ser instrumento de cura ou arma de destruição. Há pessoas que se aproximam com sinceridade, abrindo o coração, e encontram do outro lado ironia, frieza ou manipulação. Elas se afastam silenciosamente, levando consigo um pedaço da dor que lhes foi imposta. Quem “ganha” nesse jogo, na verdade, perde mais do que imagina: perde o dom de um relacionamento verdadeiro, perde a oportunidade de crescer espiritualmente e perde a chance de ser instrumento da paz de Deus na vida do outro.
A espiritualidade ortodoxa nos chama a um outro caminho. O caminho da atenção ao coração — a nípsis, vigilância — que começa pelo exame sincero das intenções. Antes de falar, perguntar-se: “O que estou buscando com isso? Estou sendo transparente? Estou cuidando ou estou usando?” É nesse ponto que nasce a verdadeira liberdade interior. A pessoa que vigia seu próprio coração já não brinca com sentimentos, porque entende que cada gesto pode levantar ou derrubar alguém.
No fim, o que permanece não é o jogo, mas a relação; não é a vitória momentânea, mas o legado que deixamos no coração do outro. Quem vive o Evangelho aprende que presença, respeito e delicadeza têm mais força do que qualquer artifício. Os Santos Padres que nunca passaram pela modernidade digital entendiam algo que ainda nos falta: o coração humano tem uma memória de grande capacidade. Ele grava tanto o bem que recebeu quanto as feridas que sofreu. Por isso, a escolha está sempre diante de nós: construir ou demolir, acolher ou afastar.
A Igreja nos ensina que amar é tratar o outro como Deus o trata: com paciência, verdade e misericórdia. E quando erramos — porque todos erramos — resta o caminho da metanoia. Pedir perdão, reparar, buscar a reconciliação. O arrependimento sincero tem força para reconstruir pontes que pareciam perdidas.
Nunca brincar com os sentimentos dos outros ultrapassa a ética humana. É uma ascese, um cuidado com os ícones vivos de Deus que Ele colocou em nosso caminho. No fim, quem escolhe amar sem jogos não perde ninguém; pelo contrário, encontra a si mesmo e encontra o Deus que habita no coração de cada pessoa.
17.11.2025
+ Bispo Theodore El Ghandour
