Perdão
A Cruz foi decidida no Conselho pré-eterno, então, de certa forma, Deus já nos havia perdoado antes mesmo de cairmos. Ele assumiu o risco da criação, sobre o qual o Padre Sofrônio fala, pois Seu propósito, mesmo antes da fundação do mundo, era a nossa salvação. E se o Senhor não tivesse dito na Cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23:34), não seríamos capazes de nos arrepender nem de encontrar o perdão. É a Sua palavra que é ativa e dá o fruto do perdão ao nosso arrependimento. A palavra do Senhor foi dita uma vez e permanece para sempre, e este é o milagre do perdão. Da mesma forma, o Senhor disse uma vez: “Tomai, comei; “Este é o Meu Corpo” (Mateus 26:26, Marcos 14:22), mas cada vez que o repetimos, cumprindo o Seu Mandamento (“Fazei isto em memória de Mim”, Lucas 22:19), ele se torna real novamente. Se não comêssemos e bebêssemos o Seu Corpo e Sangue e não repetíssemos essas palavras, cumprindo o Mandamento que o reativa, o Sacramento da Eucaristia seria impossível. Se não perdoarmos, mas guardarmos ressentimento ou desagrado em relação a alguém, não poderemos ser livres e não teremos nenhum benefício do Jejum/da Quaresma, mas permaneceremos fora da graça deste período sagrado. É verdade, precisamos da ajuda de Deus para perdoar, mas como Ele nos deu o Mandamento de perdoar, Seu desejo e ajuda já estão expressos, e o que resta é nós colocá-los em prática.
Pergunta: Se Cristo disse na Cruz: “Perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”, isso significa que só podemos perdoar verdadeiramente na Cruz?
Arquimandrita Zacarias: Sim, certamente. De qualquer forma, somos sempre discípulos da Cruz, porque procuramos seguir o Senhor. “Se alguém quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me” (Mt 16,24). O próprio ato de ser injustiçado e perdoar já é uma crucificação da mente e do coração. A essência da Cruz é a vontade de Deus para a nossa salvação, que o Filho de Deus cumpriu: Ele veio, sofreu e morreu por nós na Cruz. O mesmo padrão se repete em nossa vida: sempre que aceitamos um Mandamento de Deus e procuramos cumpri-lo, somos assimilados ao mistério da Sua Cruz e Ressurreição, por meio do qual recebemos o perdão dos pecados e a alegria da salvação. A força da Liturgia reside no fato de nos reunirmos para cumprir o Seu Mandamento, o Seu desejo, e ao fazê-lo, recebemos a graça da salvação. A virtude da obediência tem um poder imenso no monasticismo, porque é uma forma muito concreta de permanecer continuamente no espírito do Mandamento que nos foi dado por nosso Pai em Deus, de uma maneira muito concreta e pessoal.
Pergunta: Perdoar os outros nos torna semelhantes a Deus?
Arquimandrita Zacarias: Quando perdoamos, imitamos o próprio Deus, que manifestou a Sua bondade na cruz, dizendo: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lucas 23:34). Quando perdoamos, tornamo-nos semelhantes a Deus e, portanto, podemos viver com Ele e conformar-nos ao Seu espírito por toda a eternidade. O perdão nos reveste do espírito da Sua humildade. Como podemos ser justos por todos os séculos, se não recebermos em nós o mesmo espírito, a mesma disposição: “Suportando-nos e perdoando-nos uns aos outros, assim como Deus nos perdoou em Cristo” (cf. Efésios 4:32, Colossenses 3:13)? “Nós também temos a mente de Cristo”, diz o apóstolo Paulo (cf. 1 Coríntios 2:16). São Paulo é o mais maravilhoso de todos os Apóstolos, porque nunca viveu com Cristo, apenas O contemplou por alguns segundos quando foi arrebatado ao terceiro céu, mas retornou desse êxtase carregando Cristo inteiro em seu coração. Ele agora possuía o conhecimento de todo o mistério de Deus. Para mim, São Paulo é o milagre de Deus. Ele não estava entre os discípulos do Senhor, e ainda assim, num instante, tornou-se o primeiro e único Apóstolo, diante de quem até o grande Pedro se humilhou, embora sua mera sombra fosse capaz de curar os enfermos.
Pergunta: O que significa pertencer a Deus para sempre nesta vida?
Arquimandrita Zacharias: Significa ter a Sua palavra vivendo em nós, “habitando ricamente em nossos corações” (Colossenses 3:16), porque então somos marcados por essa palavra. “Pela palavra dos teus lábios tenho me guardado no caminho difícil” (ver Salmo 17:4). Se nos lembrássemos apenas deste versículo em nossa vida, jamais pecaríamos. Quando a palavra de Deus governa nossa vida, pertencemos a Ele, porque a Sua palavra é a expressão do Seu Conselho pré-eterno, do Seu propósito pré-eterno para a nossa salvação. No início da nossa vida espiritual, é fácil nos apegarmos à palavra de Deus: assim que a ouvimos e a aceitamos, nosso coração se abre e começamos a experimentar a graça da salvação. Tudo isso nos vem por meio da palavra de Deus. O Senhor é como um semeador que semeia a palavra em nosso coração e, se essas sementes encontrarem boa terra, um coração que abrace os mandamentos do Senhor, então elas darão fruto.
‘Discutindo’ com Deus
Pergunta: O Pai entrega todo o julgamento ao Filho. Como isso se encaixa na Trindade?
Arquimandrita Zacarias: Ele recebeu o julgamento porque é o Filho do Homem: humilhou-Se, assumiu a forma humana e cumpriu todos os Mandamentos de Deus em Sua natureza humana. Quando orou com lágrimas no Getsêmani, ofereceu o sacrifício pela nossa redenção em sua natureza humana, no poder do Espírito Santo. Portanto, a natureza humana de Cristo é o nosso julgamento. Ele pode julgar o mundo porque, em Sua natureza humana, salvou o mundo e deu um exemplo da perfeição do Pai. É por isso que Ele pode dizer: “Sigam-Me, Eu lhes dei o exemplo” (João 13:15). Ao segui-Lo, somos julgados gloriosamente e recebemos a coroa da salvação, enquanto que, ao não segui-Lo, somos julgados como decaídos da sua salvação.
O Padre Sofrônio lutava com Deus, dizendo: “Como podes me julgar? Tu és o Deus perfeito que habita nos céus, e eu sou uma pessoa frágil, sofrendo tanta dor nesta vida passageira. Como podes me julgar?” E o Senhor lhe disse: “Foste tu que morreste pelo mundo?” O Deus a Quem o Padre Sofrônio se dirigia respondeu-lhe como o Crucificado. Este é o Seu julgamento. Ele é o juiz porque viveu sem pecado, segundo os Mandamentos de Deus, e morreu por nós. E, após a Ressurreição, recebeu toda a autoridade no céu e na terra. Em momentos de profunda humildade e desespero, os santos falam com Deus de coração e podem receber respostas como essas, breves ensinamentos que se tornam marcos em suas vidas. É então que sua consciência se expande, seu coração se alarga, sua mente se ilumina.
Arquimandrita Zacarias: Sim, porque ele estava sofrendo. Ele tinha uma tendência, em sua vida, a “discutir” com Deus, mas disse: “Deus sempre me envergonhou, respondendo-me e corrigindo-me”. O Padre Sofrônio podia fazer isso porque estava pronto para morrer pelo Senhor e estava “discutindo” com Ele no limiar da morte. Um homem assim não pode perecer, pois Deus o trata como a um amigo, como a um igual. Todos os Santos recebem a graça após momentos tão ousados em suas vidas, quando chegam ao limiar da morte e até decidem saltá-lo, e de repente se encontram no Reino. Além disso, quando o Padre Sofrônio disse: “Sou tão fraco, como podes me julgar?”, ele estava intercedendo por toda a humanidade, não apenas por si mesmo. De certa forma, ele estava discutindo com Deus por toda a humanidade.
Sempre admirei nos Santos esse desejo destemido de vir a Deus e conhecê-Lo, ignorando até mesmo a ameaça da morte. Isso significa que a fé e o amor deles por Deus transcendem a morte que os ameaça, que eles já se consagraram à eternidade, como disse o Padre Sofrônio. É incrível. Isso é Cristianismo. Infelizmente, não conhecemos o verdadeiro Cristianismo.
Como disse Santo André de Creta em uma de suas homilias, Deus conduz Seus Santos até o limiar da morte, não para que pereçam, mas para que explorem todo o mistério de Cristo, todo o Seu caminho, descendo até o inferno, e cheguem a conhecer o Cristo total (totus Christus). É em momentos como este que aprendemos a verdadeira teologia, quando nos colocamos diante de Deus e decidimos ir até o fim. Então Deus abre nossa mente e nosso coração para conhecermos uma nova dimensão do Seu mistério. Através dessas experiências de alcançar o limiar da morte e até mesmo ultrapassá-lo, os Santos compreenderam a vida de Cristo e Sua oração no Getsêmani. Não há outra maneira de entender o Evangelho, que fala apenas da morte que salvou da morte, da morte e Ressurreição de Cristo, que nos salvou da morte do pecado e nos abriu as portas para a vida eterna.
O Poder do Jejum
Somos ordenados a seguir a Cristo até a morte, e quando experimentamos um certo entorpecimento por amor ao Seu Mandamento, recebemos uma graça tão grande que preenche todas as coisas, renovando toda a nossa vida. Somos chamados a um novo começo. Ao guardarmos os Mandamentos, o poder do mistério da Cruz entra em nossa vida. É isso que queremos dizer quando afirmamos que a Grande Quaresma é impulsionada pela graça de Deus. O poder da Quaresma reside no maior mandamento do discipulado a Cristo: morrer para este mundo. Essa experiência de morte para este mundo é vida para o Mestre que dá o mandamento. A Grande Quaresma é impulsionada pela graça de Deus porque é provocada pelo maior Mandamento. Não se esqueça de que Deus demonstrou o Seu amor, o conteúdo da Sua hipóstase, quando nos amou até o fim, enquanto o homem demonstra o conteúdo da sua hipóstase perfeita quando ama a Cristo até o autodesprezo. De fato, a Grande Quaresma é um período que nos é dado para exercitarmos o nosso autodesprezo.
Aqueles que vivem a Grande Quaresma corretamente sentem esse poder. O Senhor diz: “Em verdade, em verdade te digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, não pode florescer e dar vida” (João 12:24). O morrer do Senhor Jesus predetermina a extensão e a qualidade da nossa futura ressurreição, porque estamos nos esforçando por uma “ressurreição melhor” (Hebreus 11:35). Portanto, não se surpreenda se sentir fraqueza e um certo torpor; isso faz parte do processo, especialmente na primeira semana, quando você fica três dias sem comer. É uma grande lição. O jejum não é algo neutro. Nesse estado, somos incapazes de fazer muita coisa, mas oramos em silêncio e com muita paz. Podemos não orar tanto quanto de costume; podemos não derramar muitas lágrimas ou fazer tantas prostrações como normalmente fazemos. Sentimos que não temos energia, não conseguimos ficar em oração por muito tempo, mas invocamos silenciosamente o Nome de Cristo e cada invocação é tão poderosa que atrai uma onda de graça. Apesar desse entorpecimento, uma onda de graça percorre a alma a cada invocação. Carregamos o peso da morte de Cristo, e assim a Sua vida se manifesta em ondas dentro de nós. Dessa forma, a morte do corpo devido ao jejum caminha lado a lado com a poderosa invocação do Nome de Cristo e contém em si a semente da ressurreição, a semente da incorrupção, manifesta na força da oração que dela emana. Esse fenômeno revela o poder da Grande Quaresma e explica como a atmosfera quaresmal é agitada pela graça de Deus.
Arquimandrita Zacarias (Zacharou)
tradução de monja Rebeca (Pereira)







