Um ícone expressa a relação da história com o Reino de Deus. Embora grande parte da ênfase se concentre nos Últimos Tempos, uma característica necessária da pessoa no ícone é seu modo de vida particular e as relações em suas vidas dentro do tempo histórico. É por isso que o ícone reflete a relação escatológica e a salvação resultante disso na forma de certos eventos específicos que marcaram a existência das pessoas retratadas enquanto viveram no tempo histórico e que emprestaram à sua existência mortal certas características que permanecem na eternidade. Vemos, por exemplo, os estigmas do Senhor no ícone da Ressurreição e a Cruz em Sua auréola. Da mesma forma, os santos são retratados “carregando os estigmas de seu Senhor”.
Isso significa que os eventos salvíficos que ocorreram na história e foram elevados por sua relação com o Senhor também adquirem o caráter de algo único e inimitável. Por exemplo, o esforço ascético específico de um santo, que ocorreu em um tempo e lugar específicos, desempenhou um papel único em sua salvação e, por meio disso, na vida da Igreja, no culto, no ícone e na salvação de cada um de nós como membros da Igreja. E a morte do santo, seja em paz, por martírio ou de qualquer outra forma (em outras palavras, sua saída desta vida e sua entrada no Reino dos Céus) é um evento novo e único para a Igreja, um evento através do qual toda a Igreja desfruta de um antegozo das últimas coisas. Ao mandar pintar o ícone e reverenciá-lo, a Igreja cria outro evento. A madeira ou a parede na qual o ícone é pintado, antes neutras em termos cristológicos, soteriológicos e escatológicos, agora assumem as dimensões de um evento novo e único, porque através delas, de maneira especial, a Igreja está ligada à existência escatológica e à personalidade do santo. Compreendemos assim o que os Padres escreveram em textos e hinos e o que foi expresso como Termo [Definição] no 7º Sínodo Ecumênico: que através do ícone de Cristo e dos santos, a criação é santificada.
Assim, compreendemos por que um ícone não é um símbolo ou simplesmente um tipo para a Igreja, através do qual o santo é meramente simbolizado. Em vez disso, é a conquista única da comunhão eclesiástica, expressa pelo escritor de ícones, que, neste caso, ocupa a posição de um evangelista, manifestando em cores e padrões a relação eclesiástica particular entre santo/Cristo/Pai. O fato de que isso deve ser esclarecido na prática confere à sua execução e construção o sentido de um esforço ascético pessoal e de uma realização espiritual por parte do pintor. O pintor deve fazer de cada novo ícone do santo uma maneira de a Igreja entrar em um relacionamento com o santo. Assim, embora seja fácil que esse relacionamento seja perdido e esquecido (o que é típico nos assuntos humanos e é, segundo os Padres, uma falha muito grande), o pintor “cria uma memória” do santo que está sendo celebrado, resistindo à atração pelo esquecimento que é concomitante ao tempo criado. Essa “memória” não é simplesmente uma lembrança sentimental, mas a participação na comunidade eucarística, na “memória eterna”, isto é, na memória do nosso Deus e Pai eterno, que mantém o santo – e, por extensão, todo crente – na existência e comunhão eternas. A comunidade eucarística, com suas festas que exigem sua iconografia relevante, faz com que o pintor crie um evento, o novo ícone do santo, por meio do qual a comunidade retorna mais uma vez a um relacionamento com a pessoa escatológica, o santo.
Isso é consistente com a tradição do povo grego [e de outros] de dar nomes diferentes aos vários ícones da Mãe de Deus; de prestar homenagem particular a cada um deles no local ao qual estão especialmente associados; de atribuir milagres específicos – que são eventos novos e únicos – a cada um deles; de escrever serviços especiais relacionados ao conjunto particular de circunstâncias históricas em que o ícone foi encontrado, pintado ou operou seus milagres; de conduzir procissões e liturgias para memórias especiais, como é o caso em muitos dos monastérios na Montanha Sagrada e em muitos locais de peregrinação fora dela.
Isso explica o verdadeiro ethos iconográfico bizantino, segundo o qual um iconógrafo não se abstinha simplesmente de copiar um ícone mais antigo, mas nem mesmo copiava as ideias de um dos seus, se estivesse pintando o mesmo tema pela segunda, terceira ou enésima vez. Porque claramente ele teria acreditado que cada novo ícone era um evento novo e único de comunhão entre a Igreja e o santo retratado.
Esta é a razão mais profunda pela qual não devemos ter em nossas igrejas, nem venerar, ícones que sejam meras cópias mecânicas de ícones mais antigos, sejam eles produzidos por uma gráfica ou, mais recentemente, por um computador. E, da mesma forma, não é correto pintar ícones em imitação mecânica de um modelo mais antigo, isto é, sem que o iconógrafo tenha se dado ao trabalho de participar do evento eclesiástico por meio de seu próprio esforço ascético singular.
Infelizmente, nos últimos anos, essa sensibilidade se perdeu e o ethos ortodoxo degenerou em direção a uma visão de que exatamente o mesmo padrão deve ser reproduzido, com exatamente as mesmas cores, sem qualquer envolvimento pessoal por parte do pintor. Mesmo que essas mudanças sejam devidas a razões históricas e socioeconômicas externas, há também uma explicação teológica inquestionável para elas. Houve uma mudança na teologia ortodoxa, segundo a qual, em tempos antigos, o importante era a relação da comunidade com Cristo e, portanto, de cada membro individual com a comunidade. Essa era uma relação que se expressava principalmente na Divina Eucaristia. Por essa razão, os grandes Padres descreveram a veneração de ícones como uma expressão de culto relativo, isto é, um culto que, por meio do ícone, colocava o crente e a comunidade em um relacionamento com o santo ou Cristo e, por fim, com Deus Pai. Mais recentemente, no entanto, devido ao enfraquecimento da experiência eucarística, da teologia eucarística e do senso de singularidade dos eventos e relacionamentos que estavam conectados dentro do contexto eucarístico, outros elementos no ícone ganharam destaque, como seu simbolismo, seu ensinamento moral, sua expressão psicológica e assim por diante.
Precisamos fazer uma pequena digressão aqui, para enfatizar que a liberdade dos bizantinos, em oposição aos pós-bizantinos, não está sendo enfatizada aqui em termos de qualquer mérito ou habilidade artística, mas como Ortodoxia, no sentido de um pensamento adequado em relação aos santos e seus ícones, e da devida glorificação deles por meio de seus ícones. Em outras palavras, o que nos interessa é identificar o critério teológico ortodoxo e não qualquer avaliação estética e comparação de diferentes períodos da pintura de ícones. O critério ortodoxo nos impede de cair em desvios heréticos do dogma ortodoxo a respeito da encarnação de Deus, da salvação em Cristo e da representação de todos eles em nossos ícones ortodoxos.
Mas, com a conclusão dessa interpretação teológica, certos elementos já se tornaram aparentes para um reexame do ícone hoje e para uma proposta de um método de ensino de iconografia que restauraria a genuína tradição ortodoxa, da qual nos desviamos com demasiada frequência nos últimos anos.
Sacerdote Stamatis Skliris
tradução de monja Rebeca (Pereira)








