Quando olhamos ao redor, percebemos o tipo de mundo em que vivemos? O Bispo Basílio deve ter falado com vocês sobre a presença do Espírito Santo no mundo criado. No momento da criação, o Espírito Santo pairava sobre o mundo recém-criado. Este mundo recém-criado, em tradução, é chamado de “caos”. Quando pensamos em caos hoje em dia, pensamos em destruição, no caos que se seguiu ao bombardeio de Dresden. Mas o caos é algo muito mais essencial e profundo. O caos é a soma total de todas as possibilidades existentes que ainda não encontraram forma e floresceram. O Espírito Santo soprava sobre o caos, sobre todas as possibilidades de um mundo que fora chamado à existência e ainda não tinha forma. Ao soprar sobre esse caos, o Espírito Santo dava vida a todas as suas possibilidades, e tudo o que estava oculto como possível começou a emergir como realidade, como se pode ver no início de Gênesis. Mas Deus não impôs as formas. Ele iniciou a possibilidade de a criação se tornar cada vez mais ela mesma; de se expandir em profundidade, em largura e em todos os aspectos.
As coisas mudaram com a Queda. Mas o que havia sido dado primeiro nunca foi tirado; o mundo criado ainda é aquele mundo que Deus criou. Se está distorcido, não é porque se afastou de Deus, mas porque seu guia, o homem, se afastou de Deus, perdeu o rumo e se mostrou incapaz de ajudar esse caos a se tornar o cosmos perfeito: beleza na forma, na linha e na vida, de modo que o mundo em que vivemos seja o mundo que, em si mesmo, é puro de mácula, exceto pela distorção que criamos nele. Ao observarmos o mundo que nos rodeia, devemos ter consciência de que tudo o que nele há de monstruoso, assustador, feio e distorcido é obra nossa. Para generalizar uma frase proferida num contexto específico, um dos Padres da Igreja afirma: “Devemos lembrar que aquilo a que chamamos pecados da carne são os pecados que o espírito inflige à carne. A carne é pura. Nós a tornamos vítima do pecado. O nosso corpo diz: ‘Estou com fome’. A nossa imaginação diz: ‘Quero deliciar-me com tais e tais alimentos’. A condição natural do mundo criado é a de vítima da queda humana, da nossa separação de Deus, da nossa incapacidade de restaurar, mesmo num pequeno pedaço de terra, a pureza, a integridade e a harmonia que lhe pertencem por direito. Disso devemos ter em mente. Com que veneração devemos contemplar o cosmos e tudo o que constitui o mundo material à nossa volta, e com que profunda tristeza devemos sentir ao vê-lo distorcido, fragmentado, feio e monstruoso em certos momentos.
Novamente, quando nos voltamos para Deus, para a revelação de Deus e a criação do homem — o Senhor Deus soprou Seu próprio fôlego no homem: isto é, o ser humano original, o anthropos, o tchelovek, e o homem, o homem em sua totalidade, permaneceu cheio do Espírito de Deus. Devemos lembrar disso: não é um privilégio nosso, como cristãos ou ortodoxos, sermos assim. Todos os seres humanos são assim. Pecadores, sim, mas fundamentalmente assim. E, portanto, quando olhamos ao redor para todos os seres humanos, não temos o direito de ver o bem em alguns e o mal em outros. Devemos ver as vítimas da queda humana em uns e a vitória de Cristo no Espírito em outros. Os santos são exemplos dessa vitória. Neles, na medida em que isso é possível em um mundo que ainda não chegou à parusia, ao seu fim na vitória de Cristo, encontramos, incipientemente ou ainda sobrevivendo, a verdadeira humanidade. E disso devemos nos lembrar quando lidamos com qualquer pessoa com quem lidamos. Algumas pessoas são ‘más’, sim. Mas por quê? Será que lhes demos uma nova vida ao sermos uma revelação de Cristo e um dom do Espírito Santo? Talvez seja fácil, às vezes, ter compaixão por uma pessoa em erro, mas com que facilidade condenamos o erro do alto daquilo que imaginamos ser a verdade como a conhecemos!
Nos últimos setenta anos, tenho me dedicado a observar as crenças dos homens, as religiões do mundo. O que me impressiona cada vez mais é que, por mais diferentes que sejam da fé cristã, todas elas são uma distorção da verdade; não uma mentira descarada contra ela, exceto no caso de alguns que escolheram ser servos de Satanás e não de Cristo.
Gostaria de mantê-los aqui por mais um pouco do que o planejado: meus quarenta e cinco minutos acabaram. Se me permitirem mais dez minutos, os liberarei.
Há muitos anos, tive uma conversa com Vladimir Lossky sobre religiões orientais. Ele negava veementemente qualquer conhecimento, qualquer conhecimento verdadeiro de Deus, nessas religiões. Não me atrevi a discutir com um teólogo de tamanha grandeza, mas o que a coragem não conseguisse, pensei que a astúcia poderia alcançar. Como morávamos um em frente ao outro, fui para casa e copiei oito trechos dos Upanishads, os escritos indianos mais antigos, voltei para Lossky e disse: “Vladimir Nikolayevich, tenho lido os Padres da Igreja e sempre anoto os trechos que me chamam a atenção. Sempre anoto o nome do autor, mas, infelizmente, não consigo encontrar o nome do autor dessas oito citações. O senhor poderia identificá-las para mim?” Ele olhou e disse: “Ah, sim!”, e em um minuto e meio já havia anotado oito nomes dos maiores Padres da Igreja sob as citações dos Upanishads. E então a astúcia se revelou na falsa humildade, e eu lhe disse: “Receio tê-lo enganado. Estes trechos são dos Upanishads.” Ele olhou para mim e disse: “Mesmo? Então preciso lê-los.” E esse foi o início de uma mudança de mentalidade nele em relação às afirmações de outras religiões.
Há muitos anos, em 1961, eu fazia parte da primeira delegação russa ao Conselho Mundial de Igrejas em Nova Déli. Entre nós, havia um homem chamado Padre Ioann Wendland, que mais tarde se tornou bispo nos Estados Unidos e na Alemanha. Ele havia sido um sacerdote clandestino na Sibéria enquanto fazia pesquisas geológicas durante o período stalinista. Decidimos visitar um local de culto pagão, para ver e tentar entender. Chegamos lá. Na porta, tivemos que tirar os sapatos, o que fizemos de bom grado, e estávamos prestes a deixá-los ali quando o zelador se aproximou e disse: “Oh, não, senhor, não deixe seus sapatos aqui. Eles são novos e bons, e seriam roubados. Vou guardá-los no meu escritório.” Então, nossos sapatos foram para o escritório e entramos no local de culto. Era um local de culto circular, dividido em dez ou doze seções, e em cada uma delas havia o que chamaríamos de uma denominação pagã, praticando seu próprio culto. Sentamo-nos um após o outro nos dez ou doze compartimentos, lá no fundo, usando nossos cordões de oração e rezando a Oração de Jesus, tentando entrar em comunhão com Deus e ver se conseguíamos entrar em comunhão com as pessoas ali presentes. Saímos dali com a certeza de que, qualquer que fosse o nome que dessem ao seu deus — fosse o deus-elefante, o deus-macaco ou outro —, estavam orando ao único Deus que existe. E nós havíamos orado com todos eles, apesar de, aparentemente, estarem fazendo orações pagãs a ídolos. Isso também me fez refletir.
Vou encerrar vosso tormento com mais uma coisa. O que eu disse deve nos tornar muito mais compreensivos e atentos em nossa atitude para com os descrentes. Não aqueles que são vazios de fé, mas aqueles que são ativamente ateus. Vou dar um exemplo, que alguns de vocês já devem ter ouvido, pois sempre me repito. O exemplo é o seguinte: eu estava descendo os degraus do Hotel “Ucrânia” há alguns anos. Eu estava usando minha batina, como sempre. Um jovem se aproximou e disse: “Sou oficial do Exército Soviético. Presumo que o senhor seja um crente, visto dessa forma.” Eu respondi: “Sim.” “Pois bem, eu sou um descrente. Sou ateu.” Eu disse: “Que pena para você.” Ele perguntou: “E por que eu deveria me voltar para Deus? O que eu tenho em comum com Ele?” Eu perguntei: “O senhor acredita em alguma coisa?” “Sim”, respondeu ele, “acredito no homem e na humanidade.” Eu disse: “Nisso, o senhor e Deus compartilham a mesma fé. Comece por aí.” E, creio eu, com mais frequência do que imaginamos, deveríamos nos dar conta de que não existe ninguém que viva sem fé, sem acreditar em algo. E, muitas vezes, podemos descobrir que Deus acredita no mesmo. Só que melhor, mais profundamente, mais perfeitamente, mas essa pessoa que teme que não haja nada entre ela e Deus tem algo em comum com Ele. Neste ponto, podemos lembrar a passagem do Evangelho em que Cristo diz a Nicodemos: O Espírito sopra onde quer, e ninguém sabe de onde vem nem para onde vai.
Devemos ser infinitamente reverentes ao olharmos para o mundo que nos rodeia, o qual distorcemos e que sofre como um mártir sob as consequências do pecado humano, permanecendo puro, tão puro que Deus pôde Se tornar homem e revestir-Se de carne; uma carne que Ele herdou não apenas da santidade pessoal da Mãe de Deus, mas também do fato de ela ser herdeira de toda a santidade de milhares de anos de vida humana na história. Devemos lembrar que todos os seres humanos possuem esse sopro de vida que é o sopro de Deus e a vida de Deus, por mais distorcido que esteja. Devemos lembrar, como já disse, que o Espírito sopra onde quer. Sem essa condição prévia da forma como o mundo, a humanidade, se relaciona com Deus, ninguém — nenhum de nós e ninguém no mundo — poderia descobrir Deus. É o Espírito que nos alcança e que acende em nós a vida eterna. Portanto, quando falamos em sermos enviados ao mundo, devemos lembrar que somos mensageiros indignos de uma mensagem que pode ser recebida pelo mundo criado ao nosso redor, e pela humanidade ao nosso redor, melhor do que somos capazes de proclamá-la.
Com que frequência acontece de palavras de verdade serem ditas que não alcançam a congregação presente, mas sim alguém que, por acaso ou por um ato da divina Providência, entrou na igreja. Devemos lembrar disso. E ir ao mundo, não para proclamar uma teologia teórica da mente, mas para crescer na vida de Cristo, para nos abrirmos à ação do Espírito Santo, para crer que o Espírito Santo está ativo no mundo criado, que é querido por Deus. Caro por Deus, porque o Corpo de Cristo pertence a este mundo criado por meio da Encarnação, e à humanidade — a todos.
Metropolita Anthony (Bloom)
tradução de monja Rebeca (Pereira)








