REDENÇÃO
No Novo Testamento, Cristo é chamado de “resgate”, ou “redenção”, pelos pecados da raça humana (Mt 20:28; 1 Co 1:30). A palavra grega original lytrosis significa “resgate”, ou seja, uma quantia em dinheiro cujo pagamento concede liberdade a um escravo ou vida a alguém condenado à morte. O ser humano caiu na escravidão do pecado e exigiu redenção para ser libertado dessa escravidão.
Os primeiros escritores da Igreja levantaram a seguinte questão: a quem Cristo pagou esse resgate pela humanidade? Alguns sugeriram que o resgate foi pago ao diabo, por meio do qual os humanos se tornaram escravos. Orígenes, por exemplo, afirmou que o Filho de Deus entregou Seu espírito nas mãos do Pai e entregou Sua alma ao diabo como resgate pela humanidade. São Gregório, o Teólogo, repreendeu Orígenes por sua interpretação da redenção: “Se o grande e glorioso Sangue de Deus, o Sumo Sacerdote, e o sacrifício são oferecidos como preço da redenção ao maligno, então quão doloroso isso é! O bandido recebe não apenas o preço do resgate de Deus, mas o próprio Deus!”
São Gregório de Nissa interpreta a redenção como “engano” e “barganha com o diabo”. Cristo, para resgatar as pessoas, oferece ao diabo Sua própria carne, “escondendo” sob ela a Divindade; o diabo se lança sobre ela como isca, mas engole junto com a isca o “anzol”, a Divindade de Cristo, e perece.
Uma interpretação diferente afirma que o resgate foi pago não ao diabo, visto que ele não tem poder sobre os humanos, mas a Deus Pai. Esse ponto de vista foi articulado por alguns teólogos medievais ocidentais (em particular, por Anselmo de Cantuária). Eles alegaram que a queda da humanidade primordial despertou a ira de Deus e que a justiça divina necessariamente exigia satisfação: como nenhum sacrifício humano poderia ser suficiente, o próprio Filho de Deus tornou-Se o resgate para satisfazer a justiça divina. A morte de Cristo satisfez a ira divina e a graça foi devolvida à raça humana. A aquisição dessa graça é impossível sem certos méritos, como fé e boas obras. Como os humanos não possuem esses méritos, podem derivá-los de Cristo e dos santos, que em suas vidas realizaram mais boas obras do que o necessário para sua salvação e, portanto, as tinham em abundância para compartilhar. Essa teoria, que surgiu no cerne da teologia escolástica latina, carrega uma marca jurídica e reflete o conceito medieval de uma honra ofendida que exige satisfação. Segundo esse entendimento, a morte de Cristo não abole o pecado, mas apenas liberta a pessoa humana da responsabilidade por ele.
A Igreja Ortodoxa Oriental reagiu a esse entendimento no século XII. O Concílio Local de Constantinopla, convocado em 1157, declarou que Cristo ofereceu Seu sacrifício redentor não apenas ao Pai, mas à Trindade como um todo:
‘Cristo ofereceu-Se voluntariamente como sacrifício, ofereceu-Se em Sua humanidade e aceitou o sacrifício como Deus com o Pai e o Espírito… O Deus-Homem do Verbo ofereceu Seu sacrifício redentor ao Pai, a Si mesmo como Deus e ao Espírito…’
Muitos autores da igreja primitiva evitam completamente o tema do ‘resgate’ no sentido literal, entendendo a redenção como a reconciliação da raça humana com Deus e a adoção como Seus filhos. Eles falam da redenção como a manifestação do amor de Deus pela humanidade, uma visão apoiada pelas palavras de São João, o Teólogo: ‘Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho Unigênito, para que todo aquele que n´Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna’ (João 3:16). Não é a ira de Deus Pai, mas o Seu amor que está por trás da morte sacrificial de Seu Filho na Cruz.
Todo ser humano é recriado e renovado em Cristo. O ato redentor de Cristo não foi realizado para uma ‘massa’ abstrata de pessoas, mas para cada indivíduo concreto. Como diz São Simeão, “Deus enviou Seu Filho Unigênito à terra por você e por sua salvação, pois Ele O viu e O destinou para ser seu irmão e co-herdeiro”.
É em Cristo que o propósito da existência humana se realiza: comunhão com Deus, união com Deus, deificação. Segundo uma obra atribuída a São Máximo, o Confessor, Deus “anseia pela salvação de todos os homens e tem fome de sua deificação”. Em Seu imensurável amor pelos humanos, Cristo ascendeu ao Gólgota e suportou a morte na cruz, que reconciliou e uniu a raça humana com Deus.
A IGREJA COMO REINO DE CRISTO
“Não pode haver Cristianismo sem a Igreja”, escreveu um bispo ortodoxo russo martirizado no início deste século. A Igreja é o Reino de Cristo, comprado pelo preço de Seu Sangue e para o qual Ele conduz aqueles que escolheu como Seus filhos e que O escolheram como seu Pai.
A palavra grega ekklesia, que significa “Igreja”, “assembleia de pessoas”, vem do verbo ekkaleo, “chamar”. A Igreja Cristã é uma assembleia daqueles chamados por Cristo, daqueles que creram n´Ele e vivem por Ele. No entanto, a Igreja não é meramente uma sociedade ou comunidade de pessoas unidas pela fé em Cristo, não é apenas uma soma de indivíduos. Reunidos, os membros da Igreja constituem um único corpo, um organismo indivisível.
O primeiro a se referir à Igreja como o Corpo de Cristo foi São Paulo: “Pois em um só Espírito todos nós fomos batizados em um só corpo, judeus e gregos, escravos e livres, e a todos foi dado beber de um só Espírito… Agora vocês são o corpo de Cristo e individualmente seus membros” (1 Coríntios 12:13; 27). Através dos sacramentos, e especialmente o sacramento da comunhão no Corpo e Sangue de Cristo através do pão e do vinho eucarísticos, somos unidos a Ele e nos tornamos um só corpo n´Ele: “Porque há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos do único pão” (1 Coríntios 10:17). A Igreja é o Corpo eucarístico de Cristo: a Eucaristia nos une a Ele e uns aos outros. E quanto mais próximos estamos de Deus, mais próximos estamos uns dos outros; quanto mais cheios estamos de amor a Cristo, mais forte é o nosso amor ao próximo. Ao nos unirmos a Deus por meio de uma vida nos sacramentos, unimo-nos uns aos outros, superamos nossa habitual falta de comunicação e alienação, tornando-nos membros de um organismo indiviso, unidos uns aos outros em uma união de amor.
O mistério da Igreja foi prefigurado no povo de Israel, que foi escolhido e separado dos outros povos. Segundo sua própria compreensão, a Igreja cristã é a única herdeira legítima da religião bíblica da revelação. Esta revelação é preservada e continuada na Tradição da Igreja, que inclui tanto o Antigo como o Novo Testamento, a memória da vida terrena de Jesus Cristo, os Seus milagres e ensinamentos, a Sua morte e ressurreição. Inclui também a experiência da Igreja primitiva, os ensinamentos dos primeiros Padres e Concílios Ecumênicos, a vida dos santos e mártires cristãos, a liturgia, os sacramentos e toda a experiência espiritual e mística, transmitida de geração em geração. Em outras palavras, Tradição, na compreensão ortodoxa, significa a continuidade do ensinamento teológico e da experiência espiritual dentro da Igreja, desde os tempos do Antigo Testamento até o presente.
É absolutamente essencial para um cristão ser membro da Igreja, estar conectado com a revelação de Deus que é preservada na sagrada Tradição da Igreja, na sua memória viva. A experiência de Deus é o que é dado aos indivíduos, mas a revelação de Deus pertence a todo o corpo da Igreja. A experiência pessoal de cada crente deve ser incorporada à memória coletiva da Igreja. Cada pessoa é chamada a compartilhar sua experiência com os outros e a confrontá-la com a revelação que lhes é dada como um corpo, como uma comunidade. Dessa forma, o cristão se une a outros cristãos e a casa da Igreja se forma a partir de pedras individuais.
Metropolita Hilarion (Alfeyev)
tradução de monja Rebeca (Pereira)








