A VIDA DO CRISTÃO ORTODOXO CONTEMPORÂNEO – PARTE 1

Relatório apresentado na Primeira Conferência Internacional dedicada à reflexão sobre o legado do Metropolita Anthony (Bloom) de Sourozh, de 28 a 30 de setembro de 2007, organizada pela Fundação “O Legado Espiritual do Metropolita Anthony de Sourozh” e pela Biblioteca-Fundação “O Estrangeiro Russo”.

Metropolita Anthony de Sourozh foi um grande pastor da Igreja Ortodoxa no século XX. É impossível superestimar a sua importância para o Cristianismo contemporâneo. Poucos tiveram a felicidade de se comunicar com ele “face a face”; na sua maioria, as pessoas liam os seus livros, ouviam-no em programas de rádio e gravações de áudio; nas últimas duas décadas, tornaram-se também acessíveis gravações em vídeo das conversas do Vladika. A ausência de contato pessoal não foi de todo um obstáculo para que a imagem do Metropolita Anthony cativasse os corações; a sua vida tornou-se um modelo a seguir, e a sua palavra, um guia para a ação. Gostaria de refletir hoje sobre quais são as características específicas da obra espiritual do Metropolita Anthony que permitem que seu ministério pastoral continue com toda a força, mesmo após a partida do Vladika para as moradas celestiais. Destacarei cinco dessas características.

I.

A primeira é que a experiência pastoral do Metropolita Anthony era muito diferente do sistema de direção espiritual que se formou na nossa vida eclesial atual. O Vladika era um autêntico operário da Seara de Cristo, mas não era, de modo algum, um eclesiástico na nossa compreensão tradicional. O que é um operário da Seara de Cristo? É aquele que, com a sua vida, as suas ações, a sua oração, o seu amor, a sua capacidade de sentir a dor do próximo, a sua compaixão pelas pessoas, com a sua palavra (a palavra fundamentalmente como uma autêntica expressão da vida vivenciada) dá testemunho cristão de que Cristo é o mais importante, o melhor e o mais maravilhoso do que tudo no mundo; de que Ele entra e participa realmente em nossa vida e a transforma. O operário é sempre o “amigo do Noivo” (Jo 3, 29); isso tem pouco a ver com a direção espiritual no seu molde ideológico. Teoricamente, guiar um fiel espiritualmente é entendido como um princípio quando o Pai Espiritual (e, claro, de preferência um starets) “pega na mão da pessoa e a conduz a Cristo”. Na sua forma ideal, a direção espiritual é rara. Normalmente, vemos que o guia espiritual, de uma forma ou de outra, substitui o Cristo por si mesmo. Assim, o ensinamento espiritual se transforma num jogo indigno, que nada tem a ver com a autêntica vida espiritual, a qual pressupõe, antes de tudo, a responsabilidade pessoal, e não a sua abdicação e entrega ao próprio “pai espiritual”.

Há pouco tempo, li sobre as circunstâncias em que, nos anos 20 do século passado, um dos notáveis escritores da “Idade de Prata” russa, Serguei Nikoláievich Durílin, recebeu o sacerdócio. Alguns anos mais tarde, devido às circunstâncias extremamente difíceis para ele, viu-se forçado a afastar-se do seu ministério religioso. A sua alma delicada e sensível não suportou muito aquilo que, naquela época, era o serviço sacerdotal na prática. No entanto, ele tinha se tornado pastor não por sua própria vontade, mas sob a bênção de dois startsy, hoje canonizados – o Venerável Anatólio de Optina e o Bem-Aventurado Alexiéi Mechev. De forma estranha, ambos não perceberam que a vocação pastoral de Serguei Nikoláievich “não era para ele”, que isso, no mínimo, excedia as forças físicas e da alma daquele homem frágil e complexo. Eis um exemplo claro de como a direção espiritual, mesmo que realizada com as melhores intenções e levada a cabo por autênticas autoridades eclesiais, na prática se transforma numa manipulação pseudomística das pessoas; além disso, o fato de isso ser precisamente uma manipulação não é sequer reconhecido por ninguém.

Já o operário da seara de Cristo, tal como o Metropolita Anthony, não se ocupa de modo algum com o direcionamento direto da jornada de vida de ninguém. Ele não pega na mão de ninguém nem o arrasta para onde considera necessário. Ele, como já disse, precisamente testemunha, mostra, revela perante todos: Eis o Cristo, eis o que Ele significa na minha vida; se quiserem – vão até Ele, mas só por si mesmos. É neste “por si mesmos” que se enraíza o método pastoral do Vladika, que se baseia num respeito profundo e genuinamente evangélico pela pessoa humana, pela liberdade da sua escolha moral.

Infelizmente, é esse aspecto do Cristianismo, extremamente importante, que permanece mal compreendido e pouco realizado na nossa realidade ortodoxa contemporânea. Tradicionalmente, na Rússia, a pessoa não é categoricamente respeitada. Essa é uma base geral, fundamental e, creio, inextirpável até o fim dos tempos, de toda a nossa vida, que penetra também na Igreja e, infelizmente, constitui um dos fundamentos da ideologia e prática da direção espiritual atual. Entretanto, é perfeitamente óbvio que nenhum Cristianismo é possível sem a compreensão de que Deus não só nos ama (o amor na compreensão russa é uma coisa peculiar; lembro-me das reflexões do Porquinho sobre o Elefante-Potamo: se ele gosta dos porquinhos, e, principalmente, como é que ele gosta deles…), mas também respeita imensamente cada pessoa. A consciência disso gera naturalmente a responsabilidade pela própria vida com respeito a si mesmo, a Deus e as pessoas. Só a responsabilidade pessoal, livre e que respeita a si mesma, se pode realizar verdadeiramente no amor a Deus e ao próximo. É precisamente isso que as pessoas encontram no Vladika; um pastoreio baseado não numa direção espiritual autoritária, mas no respeito pela pessoa, gera um grande impulso criativo, que realmente produz e sempre produzirá bons frutos.

II.

A segunda pedra angular da vida e da pregação do Metropolita Anthony é o Evangelho. Na nossa realidade ortodoxa, o Evangelho não é popular. Não é ele que determina a nossa existência. No seu tempo, São Filareto, Metropolita de Moscou, escreveu: «Antes, fundamentavam-se na Sagrada Escritura e prestavam pouca atenção à Tradição. Depois, notou-se com força esta deficiência: as palavras “Ortodoxia” e “Tradição” começaram a soar com mais frequência e a fundir-se num só som, e começou-se a fazer teologia com base na Tradição, deixando por vezes para trás a Sagrada Escritura, e alguns até menosprezaram a Escritura… A Igreja… ensina a reconhecer as Tradições que estão de acordo com a revelação de Deus. E, por isso, não será mais correto fundamentar a doutrina principalmente na Sagrada Escritura, e completar com a Tradição –  explicando, defendendo a fé dos ensinamentos errôneos?» (São Filareto de Moscou. “Invocai a Ajuda de Deus”. M., Monastério Sretenski, 2006, pp. 482-483).

A ideologia eclesial atual propõe aos cristãos ortodoxos um princípio diferente, formulado de forma mais clara por Santo Inácio (Brianchaninov): «O Evangelho –  via os Padres». De fato, o sentido dogmático, doutrinal, da Sagrada Escritura não pode ser compreendido fora da Igreja, fora dos Santos Padres. Mas esse princípio não pode ser estendido à completude da vida cristã. A orientação moral quotidiana deve ser obrigatoriamente baseada na Escritura; nesse sentido, ela é autossuficiente. Como mostra a experiência, na prática, na esfera espiritual e moral pessoal, a tese «o Evangelho através dos Padres» não se realiza, pois, uma vez que falte o fundamento da Escritura, esse princípio «fica no ar», viola a hierarquia rigorosa dos valores cristãos e não raro se torna até um encobrimento das paixões, estupidezas e elementos deste mundo. O Metropolita Anthony colocou como base da sua vida precisamente o Evangelho. Toda a vida recordou como, através do Evangelho, na sua juventude, lhe foi revelada a experiência da comunhão com Deus. O Vladika construiu a sua teologia e o seu ministério pastoral sobre a Sagrada Escritura. Exemplos não faltam: qualquer texto, qualquer reflexão do Metropolita é uma aplicação do Evangelho a todas as manifestações da vida interior e exterior do homem. Este “evangelismo” puro e genuinamente eclesial – é o que leva os cristãos sinceros a recorrerem à experiência do Vladika e a guiarem-se por ela.

III.

Uma consequência da diminuição do significado do Evangelho na vida quotidiana dos ortodoxos é uma aberração da moralidade, tanto pessoal como eclesial-comunitária, muito visível hoje. Eis um exemplo típico: havia um homem bondoso, bom, compassivo, que realizava muitas boas obras às pessoas; voltou-se para Deus, deixou de fumar, não comia nada, reza dia e noite – mas tornou-se completamente insuportável para os próximos: maldoso, intolerante, dogmático, fechou o seu coração às pessoas, não ajudava ninguém – dizendo, «a bondade da natureza decaída»… Admoestar tal pessoa é inútil: em resposta, ouve-se que o principal é “salvar-se”, ou seja, levar uma vida ascética; e tudo o que atrapalhe isso deve ser cortado, pois é assim – dizem – que escrevem os Santos Padres… Penso que muitas pessoas conhecem situações assim.

Se nos voltarmos para a análise da reação coletiva das pessoas eclesiais a certos eventos significativos, veremos que esses eventos não são avaliados do ponto de vista da verdade evangélica. A Igreja declara hoje com insistência que é chamada a exercer uma influência moral na sociedade. No entanto, sob tal influência, muitos representantes eclesiais entendem uma crítica furiosa e extremamente incorreta dos “valores ocidentais”, do “liberalismo”, da democracia e coisas semelhantes; sobre os problemas reais e gritantes, tanto eclesiais como sociais – digamos, sobre a predominância do comercialismo na Igreja, ou sobre o fato de os órgãos de aplicação da lei no nosso país não só não protegerem, mas, pelo contrário, violarem grosseiramente o direito e a ordem  – não ouviremos uma palavra. O profeta Isaías diz a esse respeito: “Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz, e a luz por trevas, que têm o amargo por doce, e o doce por amargo!” (Is 5, 20). A nossa pregação eclesial parece não notar isto. Dos púlpitos ouvimos tudo, exceto uma avaliação moral evangélica da vida. Mas a palavra do Metropolita Anthony – e essa é a terceira coisa importante que constitui a atualidade do pastoreio do Vladika – é precisamente sobre isto: sobre o fato de que o homem não é apenas pessoalmente responsável, mas é moralmente responsável por si mesmo e pela Igreja, pelas suas relações com Deus e com o próximo. A base de tais relações – a humanidade, a decência, a honestidade, a não-cegueira por qualquer ideologia, a “parresia” cristã – tudo isso é a vida moral evangélica. Sem dúvida, ela é extremamente necessária hoje; e é isso que aproxima da imagem e do ensino do Vladika não apenas os cristãos, mas todas as pessoas normais e decentes.

Igumeno Pyotr (Meshcherinov)

tradução de Elitza Bachvarova

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Aurora Ortodoxia

Aurora Ortodoxia é um labor online missionário de cristãos ortodoxos brasileiros de distintas jurisdições canônicas, dedicado ao aprofundamento e iluminação daqueles que se interessam em conhecer a Fé Ortodoxa por meio da experiëncia da Santa Tradição.

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