A NATUREZA RELIGIOSA DA VIDA MODERNA

Diariamente, tenho me tornado cada vez mais consciente da natureza “religiosa” de quase toda a vida moderna. Isso pode parecer uma observação estranha, visto que a cultura em que vivemos se descreve em grande parte como “secular”. Essa designação, no entanto, só tem sentido ao dizer que a cultura não dá lealdade ou preferência a nenhum corpo religioso organizado em particular. Infelizmente, porém, essa autoconcepção torna a cultura particularmente cega ao quão “religiosa” ela é em quase tudo o que faz. Suspeito que, quanto mais distantes estivermos da verdadeira comunhão com Deus, mais “religiosos” nos tornaremos. É, creio eu, um substituto idólatra para a verdadeira existência e uma tentativa equivocada de impor uma ordem e um significado que nós mesmos criamos. Nossa vida social, portanto, torna-se dominada por nossos esforços contínuos para convencer (ou compelir) os outros (ou para nos convencermos) a aceitar uma visão de mundo e um modo de vida que não têm existência verdadeira, exceto por nossos próprios esforços para torná-los assi

Na primeira metade do século XIX, o teólogo alemão Friedrich Schleiermacher propôs a ideia de que a religião consistia em sentimentos (muito primitivos) e não em doutrina, ritual ou moralidade. Seus escritos eram bastante profundos e oferecem algumas das primeiras explorações da psicologia da mente religiosa. Sua tese, no entanto, era sintomática de movimentos culturais que já estavam sendo desencadeados em ondas de fervor “religioso” (que significa “sentimentos”). Seu século já se rebelava contra o racionalismo árido do Iluminismo do século XVIII. A beleza matemática de uma fuga de Bach estava dando lugar aos românticos (como Beethoven), onde a música se distanciava da teoria em direção à pirotecnia do impacto emocional (para não diminuir a beleza de uma fuga de Bach). O mesmo movimento pode ser visto na arte, bem como em uma série de outras referências culturais. O século XIX tornou-se o século dos sentimentos e das emoções. Nunca nos recuperamos.

Os movimentos religiosos do século XIX (particularmente o Segundo Grande Despertar) não foram movimentos de importância doutrinária. De fato, sua grande inovação doutrinária foi promover uma experiência de “renascimento”, amplamente definida como um evento emocional. O excesso emocional era o resultado esperado do “reavivamento”. De fato, os reavivamentos daquele século varreram áreas em uma espécie de histeria. Vidas foram transformadas. Centenas de novas denominações foram iniciadas em seu rastro, à medida que uma febre de emoção desencadeou uma criatividade religiosa não vista em séculos. Os grandes movimentos de culto dos Estados Unidos (mórmons, adventistas do sétimo dia, Testemunhas de Jeová, shakers, etc.) fluíram na febre da emoção religiosa. Eu acrescentaria a esses movimentos do século XIX os “reavivamentos” sociais modernos que se manifestam na teoria de gênero, no transgenerismo e afins. Eles compartilham uma base e um comportamento “religiosos” comuns e, creio eu, só podem ser corretamente compreendidos quando vistos dessa maneira. Milhares de pessoas estão sendo sexualmente “renascidas” e, vejam só, são renovadas – com comportamentos e definições semelhantes a seitas.

A mesma emoção religiosa do século XIX invadiu o âmbito político e se tornou o motor da reforma social. É igualmente verdade que o impulso em direção ao Ocidente se inspirou em uma onda de sentimento religioso para cumprir o “destino manifesto” da nação. No século XX, esses sentimentos religiosos foram explorados por anunciantes e políticos (particularmente na forma de patriotismo). É absolutamente verdade hoje que, quando assistimos a debates em torno da bandeira e do hino nacional, estamos testemunhando um debate religioso. O patriotismo é um movimento religioso.

Infelizmente, o mesmo conjunto de sentimentos é o combustível para os motores da guerra em nossa época. Os compositores de Tin Pan Alley foram escolhidos para compor músicas patrióticas a fim de apoiar a entrada imprudente dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. É raro que a “lógica” de uma guerra seja suficiente para sustentá-la em uma democracia. Somente um sentimento quase religioso pode reunir a loucura necessária para enviar pessoas à morte em larga escala. Nós não apenas lutamos em guerras – nós acreditamos nelas.

Todos esses pensamentos turbilhonam em minha mente enquanto penso em minha própria fé e prática como cristão ortodoxo. Os hábitos do coração que produzem sentimentos religiosos são poderosos. Eles são capazes de realizar obras grandiosas (como edifícios). No entanto, eles não produzem theosis – salvação. Os sentimentos associados a movimentos e eventos religiosos em nossa cultura nada mais são do que paixões. Eles incluem luxúria, inveja, raiva, vergonha, repulsa e uma série de outras forças semelhantes. O simples fato de estarem apegados a algo que consideramos nobre (como nossa fé religiosa ou a bandeira de nossa nação) não os torna sentimentos nobres. Muitas vezes, são sentimentos coletivos, capazes de gerar pensamentos e ações perigosas, até mesmo assassinas.

Como fiéis ortodoxos, oramos: “Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova em mim um espírito reto”. Isso descreve uma vida fundamentada em uma mente e um coração bem ordenados, não dominados pelas paixões, muito menos movidos pelos ventos e correntes da cultura popular. Infelizmente, a Ortodoxia é vista por alguns como uma espécie de castelo nas guerras culturais, um bastião de crenças e práticas tradicionais que oferece um lugar seguro contra os ventos liberais predominantes. É, de fato, um lugar onde práticas e crenças tradicionais são questões de dogma. Mas não é uma “máquina de vento” conservadora. Tanto para liberais quanto para conservadores, a Igreja diz: “Entrai, saí do vento”. O convite é renunciar ao(s) espírito(s) religioso(s) da época, quer estejam soprando da esquerda ou da direita.

A Escritura nos ensina: “Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”. (2Co 5:17)

O modo de vida ortodoxo nos pede que sigamos o caminho da nova criação, no qual as paixões são percebidas como distrações e correntes de escravidão. Para muitos, tal análise é criticada como “afastamento do mundo”. Não se trata de um afastamento, mas de uma recusa em participar da orgia de sentimentos que não podem servir a Cristo ou aos nossos semelhantes. Somente aqueles que crucificaram a carne e se libertaram de tais paixões estão verdadeiramente presentes no mundo. Eles são marcadores de nossa verdadeira existência e âncoras para uma comunhão firme em Cristo.

Por mais de 200 anos, a modernidade tem trabalhado sob slogans que prometem um mundo melhor. Embora os sentimentos que eles contêm sejam sempre bem-intencionados, na verdade, eles servem principalmente para atiçar paixões e exigir ações que transcendem estratégias razoáveis ​​e racionais. Eles presumem que nenhum problema é intransponível, desde que nos importemos o suficiente (esse é um sentimento que espero ver algum dia em um para-choque). É claro que não é verdade.

O sentimento “religioso” da modernidade é um vórtice de morte. Basta olhar para a cultura beligerante, onde as facções religiosas (algumas das quais se imaginam seculares) estão dispostas em constante formação de batalha. Nenhuma pode vencer a outra. Nunca se vence uma guerra religiosa.

As Escrituras nos ensinam que nossa guerra não é contra carne e sangue, mas contra “anjos, principados e potestades, e hostes espirituais da maldade nas regiões celestiais”. O único lugar onde tais batalhas podem ser travadas é dentro do coração humano. São Serafim nos ensinou que, se adquirirmos o Espírito de paz, mil almas ao nosso redor serão salvas. Nessa proporção, poderíamos salvar o mundo. Tal salvação pareceria tão silenciosa e ineficaz quanto 12 camponeses em um cenáculo. Deus nunca teve outro plano.

Sacerdote Stephen Freeman
tradução de monja Rebeca (Pereira)

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Aurora Ortodoxia é um labor online missionário de cristãos ortodoxos brasileiros de distintas jurisdições canônicas, dedicado ao aprofundamento e iluminação daqueles que se interessam em conhecer a Fé Ortodoxa por meio da experiëncia da Santa Tradição.

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