INTRODUÇÃO
A theoria (a contemplação aliada ao estudo) da patrística grega, recolhida, continuada e amplificada pelos Bizantinos, seus herdeiros diretos e legítimos, constitui um mundo à parte, inteiramente fechado às infiltrações de fora. É um mundo no qual a vida íntima do espírito dorme como uma água esquecida no fundo de um poço. Sua doutrina da contemplação, que não podemos dissociar do ensinamento dogmático da Igreja-Mãe, forma um todo homogêneo. Sobre mais de um ponto, essa doutrina, platônica até em seus últimos frutos, cristã e oriental desde sua raiz, se distingue do Ocidente latino e permanece ainda hoje desconhecida dele – ou, por ele, mal interpretada.
Todo o edifício repousa sobre a pedra angular de um duplo conhecimento: o da teognose apofática, ou conhecimento da natureza divina, incrustrado nas trevas que constituem a franja de sua Luz inacessível, e o da antropologia mística, ou conhecimento da natureza humana, perscrutado nas profundezas de seu destino primeiro, e nas deformações de seu estado presente, que é preciso reerguer antes de revivê-lo plenamente e de uma vez por todas.
Inicialmente, Deus é desconhecido, agnostos Theos, Ele está além da existência, do ser, da razão, Ele é absolutamente incognoscível e indizível. Essa agnosia, que começa por levantar uma barreira intransponível entre o incriado e o criado, se encontra na base de toda especulação judaico-cristã[2]. Já Fílon de Alexandria, que apresenta uma síntese tão pessoal da inspiração bíblica, da metafísica helenística e da mística oriental, reconhecia o mysterium tremendum desse Deus, que escapava aos instrumentos da inteligência, porque ultrapassava a própria inteligência. Ele é apoios, sem limites, sem qualidade determinada, ao mesmo tempo em que é infinitamente rico em todas as perfeições. Para concluir: “É preciso ser Deus, declara Fílon, para compreender Deus”. E eis que, pela primeira vez na história, aparece em primeiro plano, fortemente matizado pelo entusiasmo profético, a grande descoberta do espírito humano: a intuição do divino através do êxtase. Semente vinda de longe, lançada sobre um terreno admiravelmente preparado, e que germinará lentamente sob a terra, o caráter gratuito desse êxtase já se desenha no precursor judaico da mística cristã.
O Cristianismo dos primeiros séculos, ao proclamar a teofania do Verbo feito carne – Que não é o Logos de Fílon, cuja encarnação é impossível – manteve ciumentamente a transcendência do Princípio sem princípios. A palavra do evangelista, “ninguém jamais viu a Deus”, foi retomada, meditada e aprofundada no sentido joanita pelos Padres da Igreja nascente, adversários irredutíveis dos orgulhosos sistemas gnósticos que violavam o mistério depois de havê-lo entronizado. Mas somente a majestade do “Não-gerado” permaneceu insondável aos olhos dos doutores da lei. Para Santo Inácio de Antioquia, fiel ao pensamento do Quarto Evangelho, que em seu tempo já se encontrava fixado por escrito, somente o Verbo revelava o Pai, sempre desconhecido, e cujo atributo primeiro era o “tranquilo silêncio”. Esse Filho, cuja unidade indissolúvel com o Pai foi proclamada pelo bispo mártir, até fazer d`Ele – em aparência – um só Ser Divino, era chamado por Inácio em suas epístolas, de palavra ou boca “verídica” pela qual o Pai falara, tanto aos profetas do Antigo, como aos Apóstolos do Novo Testamento: “Ele é o Verbo que saiu do silêncio”.
Os apologistas acentuam primeiro o caráter específico do Logos, pré-eterna energia e ideia criadora do Pai. E, com sua teoria da dupla geração-proclamação do Filho, eles especificavam ainda sua atitude diante do Pai: em face do Deus oculto, o Deus revelado. Justino o Mártir emprega, para designar o Pai do universo, o único “não-gerado” e inominável, uma expressão platônica que devemos reter: “além de toda essência[3]”. Sua teologia da filiação divina do Verbo, gerado antes de todas as criaturas e visível apenas a elas, é claramente subordinativa, recuando em relação à Cristologia de Santo Inácio, que de resto possuía um caráter mais religioso do que filosófico[4].
O grande teólogo do século II, Santo Irineu, bispo de Lyon, embora mais próximo do que Santo Inácio da concepção que, definitivamente, triunfará, afirma com todas as letras a nossa impossibilidade de ver o Pai, a não ser por intermédio do Unigenitus Filius, porque “o homem, por si só, não vê a Deus[5]”; mas, “se o Pai do Filho é invisível, o Filho do Pai é visível[6]”. Ao mesmo tempo, esse último dos Padres Apostólicos nos mostra, bem acima de nosso conhecimento natural do Criador pela criação, um outro, mais perfeito: o conhecimento “segundo o amor”, que se opõe ao conhecimento impossível “segundo a imensidão”.
No Concílio de Niceia, em 325, impôs-se, como sabemos, com o brilhante campeão da Ortodoxia, Santo Atanásio, a crença na consubstancialidade das duas hipostases. Daí por diante, o mesmo mistério, no que concerne ao conhecimento último, abarca o Filho, igual e semelhante ao Pai, até que os una o Espírito Santo, Cuja natureza é idêntica. Pareceria então que toda comunicação imediata deveria ser cortada entre a mônada trina e a criatura racional. Mas não foi isso que aconteceu. Pois essa criatura, chamada, conforme a crença cristã, para um destino sobrenatural, invencivelmente atraída por sua causa eficiente e por sua causa final, deveria iniciar, desde aqui de baixo, o itinerarium mentis ad Deum.
Para compreender como a antinomia foi resolvida na espiritualidade grega, é preciso primeiro analisar sua noção apofática da deidade, a única adequada ao seu objeto, infinito e absolutamente simples, único exaustivo, devido à sua própria indeterminação. Estudar a seguir a estrutura íntima do homem, tal como teria sido antes do pecado, tal como se tornou por causa do pecado e tal como deverá ser novamente, para conhecer plenamente, para poder amar e contemplar santamente na união transformadora. Compreender enfim, por qual movimento duplo convergente, de inclinação divina e ascensão humana, pode se efetuar o encontro supremo: o encontro do homem com Deus, a união que deifica pela graça.
A TEOGNOSIA APOFÁTICA
O leito da teologia negativa havia sido cavado e a ponte de arco-íris havia sido lançada sobre o abismo entre Deus e o homem, antes ainda do Pseudo-Dionísio, desde os umbrais do século III, na gnose alexandrina. Inspirada pelo neoplatonismo e o estoicismo enquanto pensamento, por Fílon, enquanto experiência extática, oriental por sua terminologia emprestada aos Mistérios, essa gnose, entretanto, é profundamente cristã. Impossível negar suas ligações com o Quarto Evangelho, o da Luz-Verdade e da adoção divina, assim como impossível é recusar a grande novidade de sua mensagem. Foi Clemente de Alexandria que, entreabrindo a porta secreta, primeiro declarou que “não conhecemos a Deus, senão naquilo que Ele não é”, e que esse conhecimento intuitivo constitui uma revelação imediata. Ele assim estabeleceu o próprio princípio da doutrina apofática da qual se encontra suspensa, como por um fio de ouro, toda a mística grega. Um conhecimento das coisas divinas, ou seja, do incognoscível, não pode ser racional. Ele não pode ser obtido, com efeito, senão por uma iluminação carismática de todo o ser, e precedida por diversos graus de iniciação. Se Clemente se serve de bom grado da linguagem dos mistérios pagãos, e nos fala em hierofantia (ostentação dos objetos sacros) e de epoptia (o mais alto grau de contemplação dos mistérios), ele sempre subentende com isso a iniciação cristã, na qual o Verbo encarnado é o centro irradiante, “Filho Unigênito que é a marca da glória do Pai”. Trata-se de uma adesão direta da alma crente, elevada pela graça, uma tomada de posse de um bem, impossível de se conquistar apenas pelo esforço da vontade, ou mesmo de um pensamento purificado. E nós veremos que alguma coisa do mistério abissal permanecerá inacessível para todo o sempre, não por sua imperfeição, ou por uma impotência sua em se tornar sensível, nem por causa da fraqueza de sua inteligência. A razão está em outro lugar, na própria natureza do objeto.
Orígenes, que abriu um largo caminho para as teologias positivas do futuro, e que, com olhos de água, pretendeu perfurar todas as brumas, conservou sempre a esperança de atingir a essência da Mônada una: expurgando o espírito, preservando-o de todo contato material, ao estilo de Plotino. Seu mestre, Clemente, era mais consequente consigo mesmo, mais obediente às severas lições que vinham do fundo da tradição. Uma vez que “Deus não pode ser alcançado nem por imagens, nem por ideias, estando fora de toda e qualquer propriedade inerente às coisas”, não é possível mais do que tocar a periferia de seu ser sobre os cumes da gnose. Essa gnose inspirada dos eleitos e dos perfeitos era, para Clemente, muito superior à fé (pistis) dos simples fieis, no que ele se separa do judeu Fílon, cuja influência sofreu, e do ponto de vista da exegese alegórica das Escrituras. Mas Clemente jamais se fechou na torre de marfim da alta aristocracia, como tantas vezes o acusam. Pois, para ele, todo crente é um gnóstico ou um sábio em potência, e essa sabedoria implica, junto com a ascese purificadora, a fé, mãe de todas as virtudes cristãs. Ademais, a gnose pneumática é sempre “uma graça que ilumina o espírito”. Trata-se do dom da ágape, onde caridade, inspiração e ciência sagrada são inseparáveis[7]. Essas coisas permanecerão em toda a teologia mística dos gregos, que vêm em linha direta da gnose ortodoxa de Alexandria. Enfim, o Deus de Clemente, planando acima do inteligível e acima do sensível, oculta em si uma vontade de benevolência pessoal – a filantropia, expressão cara à patrística. E nosso Doutor compara o divino “Filantropo” à ancora invisível que atrai para a margem aqueles que a ela se agarram. Bela imagem da graça previdente cuja noção mesma era estranha à soberba dos filósofos e à embriaguez dos iniciados de Eleusis da antiguidade pagã[8].
Em boa hora canonizado por sua Igreja, o mestre de Orígenes, mais seguro para se seguir do que seu genial aluno, exerceu uma influência decisiva sobre os pneumatikoi do monaquismo no Oriente e em Bizâncio. O Stromates parece ter sido um dos livros de cabeceira de São Macário (ou Pseudo-Macário), de São Nilo, de Evagro o Pôntico, de São Máximo o Confessor enfim, o que faz justiça ao “mais filosófico dos filósofos”. Encontraremos muitas vezes o nome e a marca espiritual desse nobre mistagogo, escondido sob o amplo manto platônico ou estoico. Na via real que conduz à contemplação-união, ele será o primeiro, embora longínquo, condutor do rebanho eleito. Caberá a outros o cuidado piedoso de refundar a mística abstrata do Logos didaskalos, como mística viva de Jesus Cristo. Essa será a obra dos séculos IV e V, dos construtores do dogma e da Ecclesia.
Uma questão precisa, que já tocamos de leve, se coloca agora: o que pode o espírito criado conhecer de Deus, o que pode ver n`Ele? A resposta para essa questão, em geral pouco estudada, é, a nossos olhos, de uma importância capital, tanto para a especulação pura como para a experiência mística ligada a ela. Com efeito, ela traça uma linha de separação clara entre as duas teologias, a grega e a latina, uma linha de separação das águas que remonta a Santo Agostinho, quem, nesse ponto em especial, rompeu com a tradição patrística grega, em geral pouco conhecida por ele. Seu último representante no Ocidente fôra Santo Ambrósio de Milão, canal principal, mas não único, por onde essa tradição passou até chegar ao bispo de Hipona.
Os Padres Gregos, partindo da ideia do ser, sempre distinguiram em Deus a essência e as forças (“energias”), fossem potenciais, fossem atualizadas, distinção que remonta, sob sua forma geral, à filosofia antiga[9]. Já Plotino, depois de Aristóteles, afirmava a incognoscibilidade de toda essência, pois, sendo simples, sem acidentes e indivisível, ela não pode ser apreendida pelo pensamento, que é múltiplo e limitado. Como sonhar assim em conhecer a essência divina, abraçar o Infinito com um espírito finito? Não somente esse é impensável por definição, como ainda a própria força – que é distinta da essência, na medida em que não é exteriorizada e não se torna energia – aparece como “treva” aos seres criados no tempo ex nihilo.
A razão, iluminada pela fé, pode certamente emitir algumas verdades positivas sobre Deus. A teologia catafática, explicitando essas verdades positivas, chega a construir, peça por peça, todo o dogma: mas esse não passa da refração do mistério través do prisma do pensamento, uma ilhota que emerge do oceano do incognoscível. O último mistério permanece impenetrável, revelado unicamente pelas energias incriadas e criadoras que derivam diretamente da essência incognoscível do Deus trino[10]. Elas manifestam a perfeição da divindade – ao mesmo tempo em que velam seu brilho – tanto pela beleza do Cosmo, como pela sabedoria das leis que o governam. Assim é que as forças atualizadas do Ser único formam a base da pirâmide que sobe, estreitando-se cada vez mais, até a essência incognoscível; elas são o único aspecto visível do Deus invisível. Pontos de partida de nossa teognosia humana, que é ao mesmo tempo uma teodiceia, essas atividades – ou teofanias – trarão sempre os nomes divinos de Onipotência, de Bondade, de Inteligência ou de Providência, simples atributos que não podem, senão de modo imperfeito, qualificar o Inqualificável, e menos ainda esgotar o conteúdo do Princípio infinito.
Essa concepção já era familiar a Fílon, com uma nuance: ao isolar Deus numa solidão imutável, Fílon o fazia comunicar-se com o mundo por intermédio do Logos, a um tempo Inteligência e Força criadora, Theia dynamis (potência divina), distinto das Potências que sustentavam sua criação. O dogma trinitário ortodoxo não podia admitir semelhante degradação do divino em Suas hipostases, igualmente incriadas, idênticas como natureza e inseparáveis. Mesmo a tríade de Plotino, substancial de outro modo, mas assim mesmo emanatista, do “Um, do Nous e da Alma do mundo”, pode ser considerada análoga, mas nunca o protótipo, da Trindade cristã, que nada tem, nem pode ter, de uma hierarquia, qualquer que seja[11].
É verdade que podemos constatar algumas flutuações, que já mostramos mais acima, no dogma trinitário da teologia ante-nicênica. Em Atenágoras, por exemplo, o Logos, que é consubstancial ao Pai apenas em potência, não é outra coisa do que o conjunto das Ideias que agem no universo. Quando toda pretensão à subordinação desaparece, a incognoscibilidade se torna apanágio de toda a Trindade, e as energias, irradiando de um centro único, pertencem, sem distinção possível, às Três Pessoas, cuja essência é uma[12]. E essa essência, repetimos, jamais pode ser plenamente percebida, mesmo no êxtase, por ser um estado teopático, vale dizer, um estado no qual o homem está submetido diretamente à ação de Deus. A união do criado com o incriado não se dá senão por intermédio dos raios-forças que deificam. Daí procede a absoluta impossibilidade da visão dita intuitiva. Nada seria capaz de preencher esse abismo ontológico, uma vez que os próprios Anjos, que se banham na “luz tri-solar”, não são capazes de penetrar no coração do inviolável mistério derradeiro. Mas os espíritos puros sabem que nada sabem, e esse é o ápice do conhecimento apofático. Assim é descartada toda suspeita de panteísmo.
O mérito da escola capadócia, caminhando sobre as pegadas dos primeiros Padres, foi o de ter lançado uma luz sobre essa discriminação verdadeiramente fundamental. Sempre subentendida por Clemente o Gnóstico, ela é às vezes esquecida pelo intelectualismo gnosticizante de Orígenes, o qual, devido a esse desvio, não pode nos servir de guia aqui.
O bispo de Cesareia, São Basílio, lutando contra o arianista Eunomo, proclamou abertamente, em nome da Tradição autêntica da Igreja, que a única revelação de Deus se dá através de Suas teofanias. E ele especificou: de um lado, a essência incomunicável, de outro, as energias que dela emanam. Os dois Gregórios, e em especial Gregório de Nissa, primeiro metafísico da vida contemplativa grega, deslindaram à perfeição o intrincado problema. Esse último doutor, discípulo ortodoxo de Orígenes, a quem deu continuidade, corrigindo-o em mais de um ponto doutrinário, ensinou que o próprio Verbo não revelou mais do que uma parte da força teúrgica latente. Quanto à natureza divina, ele não pôde dá-La a conhecer, porque Ela não tem nome, sendo assim indizível. E essa ausência de nome é simbolizada pela “treva divina” na qual entrou, no Sinai, Moisés, o primeiro homem vivo arrebatado em êxtase[13]. Essa treva não é outra coisa além do ofuscamento provocado pela Luz divina. Com Gregório de Nazianzo, o bispo de Nissa nos mostra, em sua Vida de Moisés, que lhe foi inspirada pelo modelo de Fílon, aquilo que, em Deus, pode ser comunicado de modo imediato: o aspecto de seu ser que está voltado para o mundo, que não subsiste senão por essa ação da energia divina, estável. “Tu me verás pelas costas”, foi dito ao chefe do povo eleito, e a mão de Javeh, que passava, lhe escondeu Sua Face, “que ninguém pode ver sem morrer[14]”. Entretanto, a gnose, sabedoria iluminada pela graça do amor santificante, permite ao espírito deiforme contemplar os raios-reflexos dessa Face, e se unir a eles.
O ensaio de uma síntese harmoniosa, que delimitasse as duas teologias, catafática e apofática, foi tentada pelo enigmático autor das Areopagíticas, provavelmente no final do século V, cerca de cinquenta anos após a morte de Santo Agostinho. Talvez essa data, desconhecida pela história, marque o evento mais considerável para a mística cristã, mesmo para o Ocidente latino, que só adotou Dionísio com certa reserva, como que perturbado pela estranha intensidade de sua vertigem metafísica. Pois não é por citá-lo com frequência, que isso implique inspirar-se verdadeiramente nele, como podemos ver pela gnose prudente de São Tomás de Aquino. Somente Maître Eckart (e talvez Tauler e Ruysbroeck), tão próximo como afinado com a especulação transmitida por Scottus Erigena, parece possuir uma alma dionisíaca. Mas a sombra do Areopagita plaina sobre toda a Idade Média contemplativa. O que a experiência afetiva medieval sempre acrescentou a esse pensamento, elevado e diáfano, mas sem calor, foi a centelha de uma emoção, nascida do distante braseiro agostiniano, e que se tornou ainda mais ardente depois de São Bernardo.
Quanto aos gregos, eles devem à fonte dionisíaca, filtrada para eles por São Máximo o Confessor, uma cristalização perfeita das ideias que lhes eram congênitas. Entre essa fonte e a de Santo Agostinho, eles não precisaram nem hesitar nem escolher, pois da segunda, que escoa tão longe da outra, nossos Espirituais jamais se saciaram. E, não esqueçamos que, desde o século IV, no Egito, berço da vida contemplativa, a ascese mística desabrochou sobre o próprio ramo da gnose cristã alexandrina e dionisíaca.
Apenas algumas palavras, a respeito da especulação apofática do Pseudo-Dionísio, muito mais cristão e muito menos dependente de Proclus, do que em geral se afirma até hoje. Um crítico russo, Vladimir Lossky, a apresenta sob uma nova luz. Dele emprestamos, em grande parte, a exposição que se segue, e que resume os pensamentos diretores do tratado dos Nomes Divinos. O principal é: Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente.
O autor dos Livros Areopagíticos nos mostra em primeiro lugar que as duas vias, a afirmativa e a negativa, embora irredutíveis uma em relação à outra, conduzem ao mesmo fim: o conhecimento da Trindade Santa. Essa Trindade contém em Si as hénoseis, uniões, “residências secretas de Deus que não Se manifestam”, e as diakriseis, separações que se produzem primeiramente no seio da vida intradivina. Saindo da divindade, por toda a eternidade elas se revelam em múltiplas aparições às criaturas. Luzes divinas, filtradas pelo sensível, essas proodoi ou “processões” não são nada mais do que as ideias ou energias incriadas: por meio delas, Deus governa a tudo, e, por Sua vontade, delas participam os seres. Toda existência e toda substância procedem assim dessas dynameis, a que chamamos de “nomes divinos”. Sabedoria, Vida, Ser, Existência, essas coisas significam forças conferidas pelos dons que são assim denominados. Em suas incessantes teofanias, as energias criadoras em nada alteram a simplicidade perfeita da natureza divina, ainda que elas próprias sejam a Divindade, que em absoluto é diminuída. Assim sendo, não há perda alguma da essência divina, nenhuma degradação da Luz primeira, nenhum “emanatismo” no sentido próprio, nenhuma identidade de natureza entre o Princípio livremente criador e as criaturas, arrastadas nas ondas teúrgicas pelo efeito da graça. Os “raios supra-essenciais”, ao descer até as criaturas, as fazem participar da vida divina, por maneiras prescritas por Deus. E essas maneiras, analogiai, que nada têm em comum com as “analogias” de São Tomás de Aquino, são as Ideias das coisas, pré-existentes nas virtudes de Deus. Elas vêm até nós emergindo das trevas da Essência desconhecida. Princípios e fins das coisas criadas, essas ideias platônicas contêm as causas de todos os seres, e se comunicam ao mundo incansavelmente. “Deus confere a todos Sua visão (theoria), participação (koinonia) e semelhança (homoiosis), segundo a ideia divina de cada ser”. O conhecimento perfeito de todas as participações, declara Dionísio, une aos raios que iluminam a insondável Sabedoria; ao mesmo tempo em que elas nos deslumbram, elas nos mergulham na “nuvem do desconhecido”. Ali se esconde, no fundo da hesychia – o repouso, a paz silenciosa – o mistério da Causa primeira, do Deus uni e trino, que está para além do ser. Mistério supremo que se coloca na intersecção do duplo eixo das teologias, negativa e positiva. Pois as três hipóstases são a um tempo tanto as henoseis, uniões, como as diakriseis, separações, no interior da Trindade santa, que se revelam exteriormente. Ora, somente as últimas permanecem acessíveis ao olhar humano. Deus criou o mundo para manifestar Sua aparição às criaturas e atraí-las para Si pelo desejo ou o amor, Eros. O objetivo da criatura é a deificação pela graça: a theosis[15].
Após essa brevíssima análise, vemos a partir daí que a união deificante não pode ser outra coisa do que o fruto de um conhecimento negativo último. O fundo, sobre o qual se projetam como faíscas luminosas, as energias do Ser, permanece sempre obscuro. E existe ainda outra particularidade, não menos importante, e que desenvolveremos mais adiante: a deificação que participa apofaticamente se dá para cada criatura de modo individual, que é determinado pelo grau de sua perfeição e por sua natureza própria; isso, ao contrário da via comum catafática, é sempre estritamente objetivo. Daí provém a imutabilidade do dogma ecumênico, espinha dorsal de toda a consciência eclesial, e a superabundância de graças, que se adapta às almas em suas hierarquias, iluminadas e purificadas cada qual a seu modo. Graças que são, também elas, incriadas – não nos esqueçamos disso[16].
Tudo é diferente dessa mistagogia hermética, no sistema simples de Santo Agostinho, que foi chamado, não sem razão, de primeira filosofia cristã, embora, de fato, a experiência vivida tenha sido do coração. Platônica, porque acima dela se desdobra o céu das ideias-mãe, o pensamento agostiniano inunda o universo de luz inteligível[17]. Mais do que isso, a noção de unidade aí predomina, tanto na metafísica quanto do ponto de vista do dogma[18]. A simplicidade e absoluta “ipseidade” do Princípio sem começo nem fim, definido como Bem Supremo, parece obrigar o bispo de Hipona a não separar, ao contrário dos Padres Gregos, a essência divina das Forças ou Energias, que mais tarde o Tomismo irá chamar de “operações”, transformando-as em criações. Para Santo Agostinho – e sobre esse ponto todo o Ocidente o seguiu – existe em Deus uma identidade de substância e de existência, do quo est e do quod est, ou dito de outra maneira: Deus é o que existe.
Logo caíram as sutis distinções implicitamente reconhecidas pelos Padres gregos, fixadas de uma vez por todas pelo Areopagita, e que teceram a trama viva da mística grega e bizantina[19]. E então, malgrado a extrema circunspecção de Santo Agostinho, abriu-se de um golpe à contemplação o perigoso caminho do ontologismo, da visio Dei per essentiam. Ele próprio manteve erguida a barreira entre o Criador e a criatura, sempre prisioneiro da matéria, sempre engajado na massa do sensível. Somente o rapto – o arrebatamento – reservado a pouco eleitos, como Moisés ou São Paulo, podem lançar essa criatura, pelo espaço de um raio, na plena luz dos céus, na face-a-face dos bem-aventurados[20]. Aqui em baixo, a alma, embora iluminada pelas ideias divinas, não pode ver as coisas diretamente em Deus. Daí a visão imperfeita, mediata[21].
O espírito, purificado pela vontade, desfruta apenas do raio “vesperal”, como dirão mais tarde os místicos medievais, e é ainda a visão “em espelho e em enigma”, sob o véu das sombras[22]. Sempre atraído pelo peso de seu desejo – amor meus, pondus meum – o espírito agostiniano tende com toda a força de suas asas para a graça da visão beatífica, a única que pode lhe conceder a “luz de glória”. Ele se sente e se sabe ordenado à beatitude – mas não à deificação; pois essa lhe é proibida, uma vez que não pode haver, no entendimento de Santo Agostinho, consubstancialidade, portanto interpenetração, da natureza divina com a natureza humana. Tudo se reduz a uma participação íntima ao Bem Supremo.
Ora, a deificação, antecipada primeiro e como que preparada in via, completada a seguir in pátria, constitui para a patrística grega, que separa as energias essenciais da essência, o princípio mesmo do plano da criação, o objetivo supremo da Encarnação do Verbo e da vida criada. Por isso, as pontes foram bruscamente cortadas entre os dois mundos, o Oriental e o Ocidental, da teologia cristã. E cada um, muito antes da ruptura oficial, mais profunda do que se costuma crer, seguirá a curva de seu próprio destino. Somente as linhas unitivas, em ondas infinitas, mais de uma vez se entrecruzaram sob as estrelas…
A diferença transparece, ainda mais significativa do que nas duas teognosias, na dupla antropologia, para a qual devemos agora dirigir nossa atenção.
A ANTROPOLOGIA MÍSTICA
Começando por Santo Irineu, todos os teólogos gregos, do século II ao XIV (inclusive) relataram e repetiram, com toda a precisão devida, a mesma história dramática em três tempos: a do homem, nascido em beatitude, na athanasie (imortalidade) da filiação divina, morto pelo pecado, revivido pela graça e reunido pelo Espírito Santo, no seio do Cristo-Logos, sob a Luz trina. Todos concordaram em proclamar que, feito à imagem e similitude (homoiosis) – e não à simples semelhança – de Deus, Adão deveria ser um participante, por direito de nascimento, da glória[23]. Dito de outra maneira, a verdadeira natureza do homem no paraíso terrestre seria sobrenatural. Esse homem, criado livre e imortal, em estado de perfeição progressiva ou dinâmica, colocado assim no futuro, era o centro do universo, um microcosmo, pertencendo simultaneamente, por sua própria composição, tanto ao mundo inteligível como ao mundo sensível. Órgão, e não instrumento passivo, da vontade do Criador, Adão tinha uma missão a cumprir. Desde seu primeiro dia, Deus lhe havia assinalado como objetivo, conforme diz Santo Irineu, “a absorção da carne pelo espírito”. Pois esse deveria ser o fim de todo o sensível, destinado a amadurecer como inteligível[24].
Nesse plano da criação está inserida a ideia-mestra do Logos, imagem perfeita do Pai e marca de Sua glória, princípio da ordem cósmica, protótipo ideal da criatura inteligente. Segundo Santo Atanásio, seguido pelos Capadócios e por São Máximo o Confessor, o nous, esse olho da alma, era logikos, vale dizer, conforme ao pensamento criador, à palavra proferida por Deus Pai. Pois aquilo que o Pai concebe, se realiza pelo Logos e se termina em perfeição pelo Espírito.
Eis então o homem estabelecido ab initio nessa comunhão estreita com a divindade, à qual Santo Irineu chamou de Koinonia, e que as gerações patrísticas seguintes confirmarão com toda sua autoridade, com toda a força de sua convicção inquebrantável: ele é, por adoção, filho do “dia divino”.
O grande dialético da mística bizantina do século VI, São Máximo o Confessor, apôs um carimbo pessoal, muito particular, à teoria dos logoi, embrionária em Santo Atanásio, tornando-a sua. Tricotomista, como todos os Padres Gregos, que distinguiam no composto humano o corpo, a alma e o espírito, Máximo considerava o nous (que é o spiritus agostiniano, a mens ou a apex mentis dos medievais, o homem interior de Eckart e de Tauloer) – esse “norte” da alma intelectual – como sendo naturalmente deiforme. A antropologia e a cosmogonia, unidas indissoluvelmente em São Máximo, giram ambas em torno de um pivô central: o Verbo pré-eterno, o logos spermatikos dos estoicos. Dividido em logoi ou ideias-princípios que realizam o Universo, o Verbo governa inteiramente esse último:
1) pelas leis naturais;
2) pelas obras de Sua Providência;
3) pelos caminhos do Julgamento. Mas o universo, o ideal em sua essência, divino pela energia que nele se encarna, não é nem simples, nem imutável, como somente Deus é. Ele se compõe de dois mundos, o inteligível – os anjos e as almas humanas – e o sensível, o da matéria. Mais complexo e sempre instável, esse último é formado por quatro elementos, em perpétua luta. Daí provém o perpétuo escoamento das coisas. Embora de aparência enganosa, por causa de sua própria mobilidade, o mundo sensível pensado pelo Criador existe realmente e mantém, por intermédio do outro mundo, um contato permanente com seu Princípio, o Logos. O laço que o une ao mundo inteligível, do qual ele é um sinal visível, é o homem, criatura a um tempo sensível e racional, lugar de encontro de todas as energias encarnadas.
Poderíamos quase afirmar que esse microcosmo humano é o decalque do Deus-Verbo, o que lhe confere uma dignidade excepcional, e o eleva acima dos anjos[25]. São Máximo, assim como outros Padres da Igreja do Oriente, não hesita em chamar o homem de “deus criado”, com toda a força da expressão, sem nada atenuar. O homem é, como dirá um eminente representante da doutrina russa sobre a Sophia, Boulgakov, uma verdadeira “hipóstase terrestre de Deus”; segundo São Máximo, do Verbo, “por quem tudo foi feito”. Com efeito, o corpo que envolve a alma humana apresenta uma analogia com o Cosmo que recobre o Logos, como se fosse uma vestimenta. Seu espírito é a imagem de Deus, do Deus que Se revela no mundo por intermédio de Suas Forças. Eis porque, pelo conhecimento do homem, é possível chegar ao primeiro, embora incompleto, conhecimento de seu modelo incriado. E ainda podemos conhecer a esse modelo, admirando-o na sabedoria e na beleza de sua obra visível: essa é a contemplação natural adquirida.
O Logos Se manifesta no homem sob a forma de uma Inteligência soberana, que une a razão e o ser, o nous, “olho do entendimento”, é o depositário na alma do eikon (o ícone, a imagem) de Deus, o repouso de sua imagem trina: a efígie do Filho impressa pelo selo do Espírito Santo, ungido pelo Pai. A iluminação pelas ideias chega ao espírito diretamente do princípio divino (que é o “intelecto agente”, como diriam os escolásticos, e como afirmava Roger Bacon, de acordo com Avicena). Trata-se de uma intelecção divino modo. Podemos então dizer que o nous é o órgão de apreensão do conhecimento-intuição carismático; não um simples prolongamento da razão discursiva, como, por exemplo, é para a escola tomista, que não reconhece na alma nenhuma faculdade distinta da inteligência una[26]. Toda essa teoria do conhecimento é irracional em sua raiz, embora ela não recuse, para expressar as verdades do dogma, servir-se de conceitos da ratio, da lógica aristotélica, sempre provisória e precária. Trata-se de uma doutrina inatista, que, reformulando todas as categorias psicológicas, coloca Deus no próprio centro da ontogênese, como realidade única: o Deus trino que a um tempo Se decompõe e Se unifica nas “profundezas” da alma. Pois o Logos é, segundo a Igreja da ecumene, a imagem do Pai e o centro irradiante da Trindade[27], que, através d´Ele, o homem alcança.
A missão de Adão teria sido, como dissemos, a plena realização do plano providencial da economia divina. Ao assumir o papel do Logos sobre a terra, substituindo-o de certo modo, o homem deveria harmonizar todos os contrários da criação em devir, da criação que por ele seria continuada e terminada. São Máximo traça esse caminho de perspectivas ilimitadas, caminho que o homem deveria seguir sem se desviar. Ao mesmo tempo em que mantinha sua humanidade integral, ele deveria se elevar acima das distinções transitórias – a começar pelo sexo[28] – e alcançar, pela virtude e pela intelecção, a espiritualização de tudo o que existe. Ele deveria transformar a terra no paraíso, fazer dela uma coisa única com o céu, e por fim unir a si mesmo, unir-se plenamente, semelhante a Ele em tudo, salvo em sua natureza: “Pela natureza, o homem, corpo e alma, é menos do que um homem; pela graça, Ele Se torna inteiro Deus, em Sua alma e em Seu corpo” (Ambigua, XXVIII, 64). Última metamorfose, inteiramente submetida à ação carismática do Espírito.
Como meio sobrenatural para chegar a esse fim, sobrenaturalmente natural, o homem, cuja vida perfeita é a glória de Deus, possuía esse dom inato, a caridade: fruto da vontade e da inteligência, desejo imanente de perfeição, ciência infusa da Luz. No Éden, nenhuma paixão perturbava o espírito humano, mestre de todas as suas faculdades, e cuja orientação, tal como uma agulha imantada, estava voltada para Deus. Nada obscurecia a onda límpida na qual se mirava, em todo seu esplendor, a Glória incriada. Essa era a aurora sem crepúsculo, da “luz sem declínio”.
Mas o homem, assim dotado de plena liberdade de escolha, sem a qual não passaria de um vil escravo, caiu. Ele caiu, porque preferiu o amor vão de si mesmo ao amor verdadeiro de Deus. Voluntariamente, por orgulho e cupidez, de início confundido pela falsa ciência do bem e do mal, ele mergulhou na noite do não-ser. A desobediência de Adão “esse germe vivo que trazia em si todo o futuro de nossa raça”, representou uma queda imediata na vida dos sentidos e, através dela, na morte. Aqui nos encontramos plenamente na tradição agostiniana, universal na Igreja, pois Santo Agostinho diz expressamente que “o homem optou pela avara posse dos bens privados”. Foi esse ato de prevaricação que desencadeou tudo[29]. Somente os gregos insistirão primeiramente sobre o caráter intelectual da falta, ou hamartia. Para eles, todo o mal provém da agnoia (ignorância), tendo o nous cessado de ser o regulador perfeito[30]. Daí a ruptura do equilíbrio interior, a desorganização da psique como um todo. Mas não se diz aqui, como com Santo Anselmo, que o primeiro efeito do pecado original tenha sido a privação da justiça ou retidão, arrastando consigo o despertar da concupiscência, que estava latente. Aqui, a ordem dos termos é inversa: não privatio-vulneratio, mas vulneratio-privatio, como a lesão inicial que desagrega toda a natureza adâmica.
As consequências disso foram infinitamente dolorosas. Primeiro para a carne, condenada à concupiscência e, através dela, à enfermidade, a murchar e se dissolver. A seguir, para a alma, privada de sua seiva natural, sacudida até suas profundezas e como que desagregada. A vontade, não inteiramente corrompida e esmagada – como em Agostinho – mas encurvada, distorcida em suas energias. Sobretudo a inteligência, antes um reino de luz, agora obnubilada pela ilusão e dominada pela tirania da irascibilidade e da concupiscência, as partes inferiores da psique humana. Por fim, última e fatal consequência do pecado de Adão, todo o macrocosmo, ferido com seu líder, toda criatura, chamada a louvar o Senhor alegremente, foi condenado a sofrer e a gemer até o final dos tempos.
Esse quadro, de imensa desolação, onde os tons sombrios recobrem e extinguem a radiosa claridade da aurora terrestre, se encontra também sob a pluma de Santo Agostinho. Falta a ele, porém, senão a visão grandiosa da catástrofe final, o impulso audacioso de um mesmo sonho escatológico[31]. Psicólogo admirável e mestre da introspecção, o grande africano, guiado por uma aguda experiência pessoal, se agarrou quase que exclusivamente às realidades de nosso estado presente empírico, de nossa decadência marcada a ferro e fogo na espécie humana. Quanto ao primeiro Adão, em estado de inocência preternatural, ele é, antes de tudo, para Santo Agostinho, uma criatura extraída do nada. E esse nada que, no neoplatonismo, não passa da ausência ou vazio metafísico, aos olhos de Santo Agostinho (sem dúvida, última reminiscência maniqueísta) possui um caráter deficiente que é, por assim dizer, positivo: trata-se já de uma predisposição à imperfeição, senão ao pecado mesmo. M. Gilson expressa essa tendência com clareza, dizendo que, “segundo Agostinho, existe na criatura uma espécie de falta inicial que gera a necessidade de mudança”. Ora, a necessidade de “mudança”, acrescentamos nós, implica necessariamente uma ideia de decadência, porque a beatitude de Adão e Eva não poderia aumentar, sendo estática; isso é contrário ao dinamismo do estado paradisíaco, segundo os gregos, desde de Irineu até Máximo, e ainda antes.
Ademais, o estado de “justiça” em que se encontravam nossos ancestrais no paraíso, segundo o sistema agostiniano, não lhes era natural, mas sim algo como um “dom acrescentado”, um privilégio gratuito de Deus, e não a maestria radical sobre seu ser. A diferença não é pequena[32]. Aquilo que, para o Doutor da graça, aparece como uma pura liberalidade da parte de Deus, será para São Máximo e a tradição que ele representa, a vontade mais profunda do Criador. Pois Deus deseja Se encontrar no homem, criado imortal por seu sopro, e martelado à sua efigie. A imagem divina, apenas virtual na alma, reflexo longínquo segundo o agostinismo, é entre os gregos uma cópia ideal, incrustrada no peso do tecido humano. Num caso, o homem posterior ao pecado retorna abaixo de seu status naturae, que aliás é vagamente representado, e privado apenas daquilo que lhe havia sido concedido por acréscimo. No outro, ele perde sua verdadeira natureza, seu direito de progenitura e de adoção divina, premissas da deificação. Por causa dessa ferida profunda aberta no flanco da criação, o homem, esvaziando-se da vida gloriosa que um dia fôra sua, se tornou parte do Cosmo, que antes ele governava por meio de sua própria felicidade, e que a partir de agora se desagrega. A raça de Adão, se já não pode cair mais baixo, caiu de mais alto, e arrastou com ela todo o universo para o abismo. Tudo está aí.
De resto, a queda prevista, quase desejada no sistema de Agostinho, por causa da Encarnação que ela demanda, e que seria inútil sem ela, jamais foi, para a Igreja do Oriente, a felix culpa. Tanto mais que a Encarnação nunca foi concebida aí como sendo uma função da Redenção[33]. Encontramos essa crença na Idade Média, entre alguns Beneditinos do século XII, injustamente negligenciados, como Rupert de Deutz, Honorius de Augsbourg e os irmãos Gerhoh e Arno de Reichesberg, bem como em todo o franciscanismo, com Duns Scot à frente[34]. Seu ciumento Cristocentrismo exige que a criação seja levada à perfeição pelo Verbo, que, definitivamente, glorificará a humanidade. Para os scotistas, ademais, tudo é determinado pela vontade do amor de Deus, que deseja ser amado infinitamente.
Aceitando o fato consumado da decadência do ser humano, a patrística grega não sentirá mais do que uma nostalgia, uma amargura; não apenas é preciso refazer o espelho fiel a partir do espelho deformado, como ainda levar a obra até o final, ela que foi interrompida antes de começar. A saber, em primeiro lugar, reanimar, sob o impulso do Espírito Santo, a “similitude” que foi apagada, depois recolocar o mundo transfigurado na glória divina. Essa é a obra da recapitulatio, da restauração da humanidade, na qual o Deus encarnado precede o homem; na qual, tendo lhe concedido a vida eterna, lhe comunica a força deificante pelo Espírito que o santifica e o eleva, doravante, ao seio do Pai, na “nuvem luminosa” do Deus trino.
[1] O tema do presente estudo, que não passa de um ensaio, está duplamente limitado. Primeiro, pelo tempo. Nós nos detivemos em meados do século XI, com São Simeão o Jovem, o maior místico Grego, e com Nicetas Stethatos, um dos artífices da separação das Igrejas. Esse último acontecimento encerrou todo um milênio de pensamento religioso criativo e de experiências vividas. Uma nova era irá se abrir em Bizâncio no século XIV com o movimento hesicasta do Monte Athos, que trouxe grande problemas, até hoje não completamente resolvidos. Nós os apresentaremos eventualmente. Da mesma forma, no que diz respeito à doutrina da graça deificante nos Sacramentos, ou à mística ritual da Igreja. Somente iremos nos ocupar da busca solitária da alma, que sobre para Deus, sem jamais nos afastarmos da teologia dos Padres, nem da ascese tradicional. Trataremos exclusivamente dessa teologia nessas páginas, um pouco ligeiras, que se seguem. Uma última observação: convencida do caráter sintético – e não sincrético – do Cristianismo original, a autora não tentou esgotar esse bloco errático.
[2] Para os Gregos como para os judeus, Deus é igualmente inacessível, mas por razões diferentes, filosóficas ou religiosas: os gregos consideravam o primeiro Princípio como incognoscível em si, por causa da ausência, nele, de toda e qualquer qualidade definível, por ser ele uma substância simples. Para os judeus, a arrasadora majestade d´Aquele que não Se ousava nomear, não permitia à imperfeita natureza humana aproximar-se d´Ele, ou de conhecê-Lo fora da Revelação. Os rabinos viam no carro-trono, sustentado pelos quatro animais alegóricos da visão de Ezequiel, a imagem do insondável mistério divino. E Job acrescenta: “Deus é tão grande, que triunfa sobre nossa ciência”.
[3] Ver Apologia, I, 10 e II, 12: somente o Pai é inominável, porque é o único “não-gerado”.
[4] João Damasceno vê uma distinção semântica entre agenêtos, não produzido, e agennêtos, não gerado.
[5] Adv. Haer. IV, 20, 5.
[6] No capítulo V de seu tratado Adversus Haereses, Irineu interpreta todas as teofanias do Antigo Testamento como aparições do Verbo. Já os apologistas haviam expressado a mesma opinião, que parece advir de Fílon.
[7] Devemos buscar o ponto de partida dessa ideia-mãe de Clemente, que encontraremos em todos os “Espirituais” Gregos depois dele, nos meios judaicos da época helenística; essa é a teoria da identidade entre o sábio e o extático, teoria desenvolvida, sob influência judaica, por Fílon de Alexandria.
[8] R. Arnou, em seu estudo Le désir de Dieu dans la philosophie de Plotin, 1921, escreve: “Deus não Se entrega no êxtase, Ele Se deixa acontecer”. E também: “Deus é o Primeiro, sem jamais Se tornar o Amigo, um Deus cuja bondade é sem amor”. Isso é verdadeiro para todo o misticismo pagão, embora nos seus graus superiores a contemplação seja inseparável do amor. Para Plotino, o Bem da alma é a soma da Virtude com a Inteligência, que resulta na Beleza.
[9] Para Platão, Deus é um Princípio imutável, um ontologismo estático; para Aristóteles Ele é o ato puro e o primeiro Motor. Toda a Idade Média escolástica adotara, como sabemos, essa definição, que se estenderá aos anjos, enquanto espíritos puros. Já o homem, é um composto: uma matéria conformada pelo espírito, que atualiza toda potência, considerada como uma imperfeição. O pensamento de Plotino, ao qual o neoplatonismo será fiel – o areopagitismo cristão – distingue em cada objeto sua essência, as potências pertencentes a essas, e as forças atualizadas. Para essa escola, a potência, ao contrário do aristotelismo, não constitui uma inferioridade em si, mas a força criadora por antecipação. De resto, sendo a essência inatingível, ela não pode ser objeto do conhecimento. É o que repetem os Padres Gregos, como São Basílio e São Gregório de Nazianzo; para conhecer plenamente, o sujeito deve se tornar um com o objeto do conhecimento, na identidade entre essência e conhecimento.
[10] A especulação cristã platonizante considera o mundo criado como uma série de teofanias da essência divina. É o que pensa, por exemplo, o irlandês João Scotus Erigena, embora católico latino.
[11] Na concepção cristã, o princípio hierárquico só vem a surgir com as criaturas. No interior da vida divina, só existe, na unidade metafísica e na igualdade consubstancial, a multiplicidade das Pessoas co-eternas.
[12] Para sermos exatos, devemos dizer: uma essência (ousia), três substâncias, a pessoa, propsopon são, segundo Aristóteles, “a substância individual de uma natureza racional”. Mas essa linguagem não é admitida pela Igreja Romana, que teme criar uma confusão de termos. De resto, sabemos que as expressões de persona e hypostasis não se superpõem inteiramente, pois o vocabulário latino tem menos nuances do que o Grego.
[13] Aos olhos de Fílon, todos os justos do Antigo Testamente teriam sido profetas, inspirados pelo Espírito. Mas ele distinguia entre o êxtase-visão de Deus – ou aparição, teofania – e o êxtase-ascensão da alma para Deus, o qual, modificado no contexto da mística cristã, receberá o nome de rapto ou arrebatamento. Seu primeiro representante será sempre Moisés, no Sinai, e, no Novo Testamento, São Paulo.
[14] Êxodo 32: 33. Os místicos medievais empregavam correntemente a expressão “ver a Deus pelas costas”, vale dizer, contemplar Suas ações, mas não Sua essência.
[15] O Oriente Grego assimilou o pensamento dionisíaco, sobretudo por intermédio das Scholias de São Máximo o Confessor, que adaptou os Areopagíticos à estrita Ortodoxia, corrigindo em especial das tendências monofisitas secretas na Cristologia de seu autor.
[16] A Igreja do Oriente não elaborou uma doutrina tão precisa e exaustiva da graça, como aquela que desenvolveu o Ocidente sob o impulso de Santo Agostinho. Mas, contrariamente a essa, ela sempre manteve, junto com a diversidade dos carismas ou dons do Espírito – modos de participação dos humanos na vida divina – sua natureza incriada. O mesmo acontece com a Sabedoria, Sophia, identificada tanto com o Logos (era patrística em seu conjunto), como com o Espírito Santo, identificação que encontramos em alguns Padres Gregos, em especial sob a influência das Escrituras, e também de Fílon.
[17] A teologia apofática de Santo Agostinho se aplica a Deus, enquanto Ser suprassensível, que transcende toda matéria, que não possui nenhum caráter antropológico, mas não enquanto estando acima de todo ser. Seu mistério não jaz em sua natureza própria, mas na imperfeição da natureza humana, que não pode se elevar até a inteligência pura. Sobre esse ponto, existe uma coincidência, o que é raro, entre o grande Africano e Orígenes. De resto, foi Agostinho quem, em primeiro lugar, atacou a fundo o argumento preferido dos origenistas em favor da consubstancialidade: a saber, que o Pai não teria podido ser sábio pré-eternamente, se não houvesse gerado o Verbo-Sabedoria antes dos séculos. A forte crítica de Agostinho sobre esse argumento, da qual ser serviu ainda seu mestre, Ambrósio de Milão, contra os arianos, se baseia na impossibilidade de atribuir a Sabedoria apenas ao Filho, pois ela é um apanágio da Trindade como um todo, e não uma função do ato gerador divino: tudo o que pertence ao Filho, pertence, desde sempre, ao Pai, e inversamente, com exceção das relações de paternidade e filiação. Isso é mais do que justo. Mas, a partir dessa premissa, podemos deduzir que o Pai é cognoscível, tanto quanto o Filho (isso é agostiniano), como podemos deduzir pela incognoscibilidade do Filho, igual à do Pai, como os Padres Gregos. Somente esse último caminho conduz à verdadeira posição apofática.
[18] Toda a concepção trinitária de Santo Agostinho aceita pela Igreja do Ocidente com ligeiros retoques, repousa sobre a ideia de unidade. Ela parte do um para desembocar no três: amans, amatus, amor, eis a definição favorita da divindade trina (cf, De Trinitatis, VIII, 10). Pode-se dizer com razão que Agostinho nos mostrou antes uma Trindade em Deus do que um Deus que seja uma Trindade. O perigo de tal princípio unitário será sempre uma inclinação para o modalismo (Abelardo e Pierre Lombard). Ao contrário, os Gregos remontam à unidade primeira, partindo de hipostases distintas. Sua dificuldade está numa tendência trinitarista que foi inclusive reprovada em Basílio o Grande. A mesma tendência iremos encontrar, com mais clareza, na Idade Média, com Roscelin, Gilbert de la Porré e sua escola, Joachim de Flore. É de se notar que a revelação cristã, assim como o Símbolo de Niceia e como todo símbolo batismal, implica em primeiro lugar a ideia das três Pessoas Divinas separadas.
[19] Único dentre os filósofos medievais, caminhando sempre nas pegadas do Areopagita, Scottus Erigena manteve, em seu De Divis Naturae, a distinção entre a essência e as energias divinas. Somente ele ensinou que, mesmo na visão beatífica dos santos – tanto quanto dos anjos – não é possível contemplar a essência de Deus. É um erro acusá-lo de panteísmo, embora ele tenha passado perto disso nas suas teorias sobre a criação da alma. Parece que a reprovação feita no século XIV a Maïtre Eckart, discípulo longínquo do Areopagita – e através dele a toda a teologia grega – se deve à mesma confusão. Quanto aos místicos do Oriente cristão, suas revelações serão julgadas pela Igreja Grega segundo um critério bem diferente, fundamentado na rejeição às “imaginações” sensíveis.
[20] São Tomás, por respeito à autoridade agostiniana, manterá ainda essa distinção, que dominou a Idade Média latina.
[21] “A anamnese platônica não tem relação com o papel, bem diferente e muito mais restrito, atribuído pelo bispo de Hipona a essa peça mestra de seu sistema, a memória. De modo geral, o puro platonismo de Santo Agostinho, que já foi um axioma, já não é mais aceito por nenhum de seus historiadores…” (R. Carton, L’illumination divine chez saint Augustin, 1931)
[22] Desde Santo Agostinho, a linguagem dos místicos emprega de bom grado as expressões imagéticas de “conhecimento matinal” e de “conhecimento vesperal”; elas designam dois conhecimentos de Deus, um incerto, outro perfeito. A última parece reservadas pelos espíritos ortodoxos àquilo que está além dos Bem-aventurados. Esse é, ao menos, o sentimento expresso muitas vezes por São Bernardo: o conhecimento e o amor perfeito – que são uma coisa só na mística afetiva cisterciense – não são desse mundo, para o abade de Clairvaux. E o “pleno Meio-dia” será, para toda a escola de Eckart, a apreensão ou a intuição do próprio Ser de Deus. A bem dizer, o caráter verdadeiro da “Visão da essência divina” em Eckart ainda não foi elucidado, pois sua obre mística ainda não foi suficientemente estudada até hoje.
[23] Esse ponto de partida, que determina a atitude de Deus em relação à criatura inteligente, e a natureza íntima de suas relações, dá ao pensamento patrístico seu tom particular, e lhe confere sua originalidade. Pois é daí que decorre a própria teoria da Encarnação-Redenção dos Padres Gregos, transmitida por eles e recebida tradicionalmente de todos os Bizantinos. Essa similitude entre o homem e Deus, sobre a qual se apoiou Clemente de Alexandria, já se encontrava em Fílon. É a ideia do Anthropos celeste, a respeito da qual voltaremos mais adiante.
[24] A primeira doutrina ortodoxa completa sobre a criação do homem, sua natureza própria e seu objetivo sobrenatural se encontra no tratado de Gregório de Nissa, conhecido e citado por Scottus Erigena com o nome de Sermo de Imagine (P.G. t.144), traduzido no século VI para o latim, e seguido por todos os bizantinos.
[25] Embora a angelologia de Dionísio, com suas hierarquias purificadora decrescentes, tenha sido adotada pela Igreja Grega (e pela católica, desde a Idade Média), essa sempre distinguiu entre, de um lado, a preeminência espiritual da natureza angélica, mais próxima da fonte divina, sendo o anjo uma luz segunda, e, de outro, seu lugar no universo, inferior em importância ao posto do homem-microcosmo. Ora, a Encarnação, que revestiu a carne humana de tal esplendor, acabou por elevar o homem, imagem do Logos, a um altura única na escala dos seres criados. Com que audácia o autor da Fé Ortodoxa, João Damasceno, declara: “Deus não Se uniu à natureza angélica, mas à humana, e Se tornou homem em hipostase” (De Imaginibus, orat. III, c. 26). E, falando da Eucaristia, ele dirá ainda que os anjos não participaram – como os homens – da natureza, mas apenas da energia divina, pois eles não participaram da carne e do sangue de Cristo. O germe desse pensamento pode ser encontrado na epístola aos Hebreus, que diz a respeito do Filho do Homem: “Ele não está encarregado dos anjos, mas da descendência de Abrahão” (Hebreus 2: 16).
[26] Esse é um ponto de litígio entre o tomismo e a escola de Eckart, que separa o conhecimento de consciência do conhecimento racional.
[27] Os bizantinos talvez tenham especulado menos e antes insistido mais que os teólogos latinos sobre a imagem do Deus trino, impressa na alma humana. Uma comparação rápida se impõe. O que domina, em Santo Agostinho e nos medievais, é a ideia de analogia, de semelhança longínqua. E sempre se afirma a tendência unitária; a mens, substância una da alma e, no interior, o pensamento puro, seu próprio conhecimento e sua vontade. Sobre o conceito trinitário divino, da Inteligência que se conhece e deseja – conceito que tem uma origem puramente psicológica e humana – teria se formado, por analogia, o ser espiritual do homem. Nessa teoria da imagem encontramos a seguinte tríade: inteligência, memória, vontade, ou ainda, transpondo-a: ser, compreender, viver. Aqui não existe distinção real entre a alma e suas faculdades, “para nos oferecer nela uma imagem racional da Trindade”. Mas “Agostinho consagra o último capítulo de sua I a descrever as diferenças radicais que separam a Trindade criadora de suas imagens reais. É a análise de São Boaventura que ilumina melhor a economia trinitária da criatura racional, segundo o pensamento medieval. O triplo princípio espiritual é aí composto de substantia, virtus, operatio.
O homem, efígie real do Deus trino, se encontra no Ocidente antes da escola de Eckart, em Erigena, pois, para esse, como para os gregos, a Trindade da Qual se deve partir sempre Se reflete inteira na criação, da qual o homem representa o cume e a síntese: per essentiam Pater, per sapientiam Filius, per vitam Spiritus Sanctus; ou intellectus, ratio (no sentido da contemplação das ideias, e não da razão discursiva), e sensus, o sentido interior.
Os bizantinos distinguiam no homem, verdadeira imagem divina: a Inteligência pura, princípio de todo o ser, seu pensamento expresso ou Verbo, e o pneuma, a respiração da Vida, sopro ígneo do amor.
[28] Desde Orígenes e Gregório de Nissa, os gregos se inclinam a ver no primeiro homem criado à imagem de Deus (Gênesis 1: 26) um ser ideal andrógino, que deverá ressuscitar no Juízo Final, como o Cristo “glorificado”. Essa androginia primitiva aparece em Fílon. Encontramos o mito do Anthropos celeste num tratado de Hipólito sobre os Naassenios. Qualquer que seja a origem “gnóstica” dessa crença, o Ocidente agostiniano rompeu com ela. Somente Erigena partilha dela, contra Agostinho que afirma em sua Cidade de Deus que ela é contrária ao Evangelho de Mateus (Mateus 22: 29-30).
[29] Discute-se muito para saber se a concupiscência era, para Agostinho, a raiz, ou, como para Santo Anselmo, e para toda a Igreja do Ocidente depois dele, apenas a consequência do pecado. A mesma questão poderia ser colocada para os gregos, cujo pensamento poderia parecer flutuante à primeira vista. Para Gregório de Nissa, a queda dos Anjos teria sido causada pelo orgulho, por Lúcifer ter se ofendido pelo fato de o homem ter sido criado à Imagem Divina. Coisa curiosa, encontramos essa crença, de forma mais cativante, nas imagens islâmicas que remontam à Vila Adae, de origem judaica: a desobediência de Satanás, recusando-se a se prosternar diante de Adão, sob a ordem de Deus. No que se refere à queda do homem (no sentido da criatura humana), ela parece ter sido provocada, segundo o jovem Capadócio, por um movimento de atração pelo falso nem e a falsa ciência. À primeira vista, um erro de julgamento, mas um erro que já mostrava uma preferência sensível. É por isso que – segundo o doutor de Nissa que seguia a seu mestre, Orígenes – Adão e Eva, tendo perdido seus corpos etéreos, tomaram um corpo material que encarnava o apelo aos sentidos; somente com esse corpo nasceria a vida sexual, desconhecida no paraíso terrestre. Os bizantinos permaneceram fieis a essa lembrança da longínqua espiritualidade origenista (com exceção da doutrina gnóstica da pré-existência das almas). Encontramos a mesma ideia da destruição de nossa natureza divina primitiva em Scottus Erigena, cuja antropologia é essencialmente Grega. O mesmo podemos dizer de alguns beneditinos do século XII, perdidos no Ocidente, como Rupert de Deutz, Honorius de Augsbourg e os irmãos Gerhoh e Arno de Reichesberg.
[30] Para São Gregório de Nissa, a dignidade do homem está na sua inteligência, imagem ou espelho que reflete a Inteligência de Deus. Essa é a parte divina de seu ser (De Imagine, XII, C. 164). A mesma concepção intelectualista está em São Máximo, que, em sua antropologia, segue de perto o bispo de Nissa, e também nos bizantinos; mas a inteligência aqui e sempre suprarracional, não nos esqueçamos disso.
[31] Não que a escatologia da Cidade de Deus, da qual bebeu toda a Idade Média, tenha sido menos rica do que a dos Bizantinos. Mas o homem agostiniano ressuscitado mantém ainda seu aspecto terrestre (De Civitas Dei, XXII, 1). Sua carne ainda não se encontra transfigurada, como na patrística Grega. Essa é o erro que lhe aponta Erigena (De Divis. Natur., V, 37). A esse respeito, é interessante comparar o bispo de Hipona com seu mestre, Santo Ambrósio de Milão, que manteve intacto o pensamento tradicional: veja-se seu Comentário sobre São Lucas, no qual a espiritualização da natureza humana é completa.
[32] O ponto de vista ne varietur de Agostinho é sempre assim: Deus nada deve à Sua criatura. Mesmo a imortalidade do primeiro homem consistia unicamente em não dever, e não a não poder, morrer; a retidão e o amor imperturbatus de Adão tampouco pertenciam à natureza própria do homem, que permanece sendo um enigma. A esse respeito, como em outros pontos, a doutrina agostiniana foi modificada por São Tomás, para o qual existe uma essência incorruptível na natureza humana. Acrescentemos que, segundo ele, perdemos, com o pecado original, não apenas os dons sobrenaturais – cuja visão intuitiva, que não passa de uma graça (isso, ao encontro do pensamento fundamental Grego) – fomos feridos ainda in naturalibus. Mas, no Agostinismo, trata-se de uma verdadeira corrupção da natureza, enquanto seus princípios essenciais subsistirão, segundo São Tomás. Quanto aos gregos, somente a Encarnação poderia, por um milagre sem precedentes, recriar a divindade ideal de nossa espécie, cuja imortalidade era a principal característica, e que João Damasceno chama de “sua verdadeira natureza”.
[33] Segundo São Máximo e alguns Bizantinos, o Verbo teria Se encarnado de qualquer maneira, mas não teria sido enviado à morte. Somente a Cruz foi demandada pelo pecado original, coisa que nenhum grego jamais negou, diga-se o que se disser.
[34] O esquecimento em que caiu a escola de teologia inspirada pelos Padres platônicos se explica pelo triunfo, no século XIII, da escolástica aristotélica, e sobretudo pela desconfiança crescente da Igreja contra Scottus Erigema.
Myrra Lot-Borodine
tradução de Tito Kehl








